António Covas

Arquitetura e gestão do território da 2ª ruralidade

Caro leitor, volto ao tema da 2ª ruralidade para um pequeno ensaio de prospetiva sobre a arquitetura e gestão do território, um exercício de antecipação sobre o impacto e confluência das grandes transições – climática e energética, ecológica e agroalimentar, digital e laboral, demográfica e migratória, geopolítica e securitária, turística e cultural – no universo rural. O século XX foi marcado pelos avanços espetaculares da física e da química, pela agricultura químico-mecânica e produtivista, o século XXI pertencerá às ciências da vida em sentido amplo e às múltiplas formas de agricultura sustentável.

Neste contexto, se a economia biotecnológica tem o domínio dos instrumentos e dos processos, a economia agroecológica e ecossistémica do mundo rural já tem, também, uma matriz de objetivos bem consolidados que aqui relembro brevemente: a reposição e valorização da biodiversidade, a pluralidade e a integração das fontes energéticas, a multifuncionalidade e sustentabilidade dos recursos e das atividades, a valoração e valorização dos serviços de ecossistema, a qualidade e a segurança dos alimentos, a consolidação dos mosaicos e unidades paisagísticas, a solidariedade e a cooperação territorial descentralizada entre grupos de municípios, regiões e países. É a este conjunto de objetivos e à economia socio-estrutural e contratual que lhe corresponde que atribuímos a designação de ordem agroecológica que marcará decisivamente a 2ª modernidade da agricultura e do mundo rural.

Daqui decorre, porventura, a pergunta mais pertinente: estão os movimentos sociais da agricultura sustentável, dos consumidores, do ambiente e do património histórico e cultural, por via de uma convergência, mutuamente vantajosa, dos direitos agroecológicos, sociais, naturais e patrimoniais, em condições de se erguerem a um patamar superior de consciência e organização, de tal modo que sejam capazes de influenciar, no sentido pretendido, o sistema produtivista e mercantilista dominante ou, em alternativa, articulando-se, de alguma forma, com esses interesses (e, quem sabe, por eles, mesmo, patrocinados), e prosseguir, assim, os mesmos objetivos?

Vivemos, hoje, com as grandes transições, um movimento permanente de dissolução e recreação de sentido. O espaço é uma sucessão interminável de formas e conteúdos, produzidos e reproduzidos continuadamente. Neste contexto, a transição para a 2ª ruralidade é um caminho de interconexão entre a cidade e o campo, a natureza e a cultura, a economia e o ambiente, o sector e o território, o moderno e o tradicional, as ciências naturais e as ciências sociais. É, também, um caminho para uma nova biopolítica ou política da vida, onde a biodiversidade, na base, e a diversidade cultural, no topo, andam de mãos dadas. Entretanto, neste mundo plano em que ainda vivemos, a força dos lugares e do quotidiano torna-se um vetor fundamental da metamorfose do espaço-território. Não obstante a sociedade do micro e do nano processamento tender para um máximo de controlo vertical, a transição para a 2ª ruralidade é, também, uma oportunidade para alargar o campo de observação da agricultura convencional e proceder à sua conversão agroecológica e biogeográfica. Façamos, então, uma breve incursão e um pequeno ensaio de prospetiva por esta arquitetura da 2ª ruralidade que poderá ser composta por cinco subsistemas:

  • O subsistema redes de vilas e cidades (1) enquadra a oferta agregada de bens comuns colaborativos (BCC), a agricultura acompanhada pela comunidade (AAC) e a formação do sistema agroalimentar de base local (SAL),
  • O subsistema terroirs e quintas novas (2) reporta-se à agricultura especializada, indicações geográficas de proveniência (IGP), denominações de origem controlada (DOC), mercados de nicho, mas já em linha com as novas métricas ESG e a conversão agroecológica,
  • O subsistema sistema-paisagem e geossistemas (3) reporta-se à gestão das áreas de paisagem protegida (APP), áreas integradas de gestão paisagística (AIGP), zonas de risco e condomínios de aldeia, zonas de intervenção florestal (ZIF), ecossistemas e serviços de ecossistema (ESE),
  • O subsistema amenidades paisagísticas, turismo acessível, eventos das indústrias criativas e culturais (ICC) (4), reporta-se às atividades turísticas, recreativas, culturais, desportivas e terapêuticas, ou seja, à ruralidade enquanto espaço de consumo,
  • O subsistema político-administrativo (5) – municípios, comunidades intermunicipais, administração regional – reporta-se ao conjunto de instrumentos de programação e planeamento das unidades territoriais de enquadramento e respetivos sistemas de incentivos.

De um ponto de vista instrumental, a arquitetura destes cinco subsistemas da 2ª ruralidade necessita, para funcionar, de inteligência coletiva territorial, logo, de um ecossistema digital e respetivas plataformas colaborativas de interligação e conexão. Sabemos já que a transformação tecnológica e digital do universo agro rural é um desafio de elevada complexidade. Basta, para tanto, lembrar a forte diferenciação dos subsistemas de agricultura, desde a micro e pequena agricultura de subsistência, até à agricultura superintensiva de exportação, com passagem pelas diversas agriculturas de base ecológica e biológica. Perante tal diversidade, faz sentido a pergunta: a transição digital aumenta a discriminação e reduz aquela diversidade ou, pelo contrário, adapta-se às várias velocidades e melhora o desempenho de cada subsistema se, para tanto, existirem agentes e atores em condições de protagonizar a transição em cada um daqueles subsistemas?

Não é fácil responder a esta pergunta, mas as plataformas digitais colaborativas, descentralizadas e distribuídas, geridas de forma associativa, cooperativa, mutualista ou comunitária podem fazer a quadratura do círculo e adaptar-se às dinâmicas próprias de cada subsistema agrícola e promover a sua conexão e interligação para uma melhor inteligência coletiva territorial. Vejamos as condições de formulação do problema, o seu policy-problem.

Em primeiro lugar, temos os diversos subsistemas de agricultura em presença, em particular, as suas dinâmicas próprias de envelhecimento, rejuvenescimento e modernização (vejam-se os últimos números no retrato feito recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em especial a queda dos pequenos agricultores singulares de 400 mil em 1989 para 274 mil em 2019 e a subida do nº de empresas e sociedades).

Em segundo lugar, temos os vários instrumentos de reforma em curso – o pacto ecológico europeu, a estratégia do prado ao prato, a nova PAC e as novas métricas de sustentabilidade – assim como os impactos das sanções da guerra e da inflação.

Em terceiro lugar, importa saber como toda esta arquitetura se enquadra na política de coesão territorial para uma determinada região ou sub-região de modo a acautelar os efeitos externos positivos e negativos da política agrícola e, assim, não lamentarmos que se tenha reduzido a tomar medidas reativas de mitigação e remediação.

Por último, temos de refletir sobre o conceito operativo de plataforma colaborativa que melhor se adapta aos vários subsistemas do programa de ação e, também, às prioridades setoriais do universo corporativo agro rural.  Nesta linha, aliás, importa desde já adiantar que não há nenhum determinismo tecnológico ou digital que nos seja imposto pelas plataformas, embora tudo dependa, no final, do grau de literacia digital que tenhamos já adquirido.

A propósito de arquitetura digital, três questões relevantes merecem a nossa atenção na transição para a 2ª ruralidade. A primeira diz respeito à constituição de uma meta plataforma colaborativa ao nível do programa operacional regional (POR-NUTS II) para reforçar a conexão entre os subsistemas e dar maior consistência e integração às medidas de política desse programa. Trata-se de saber qual o modelo mais indicado de arquitetura digital para a recolha e tratamento de dados e a produção dos metadados que são imprescindíveis para o planeamento dos recursos, a gestão do território (a cooperação entre CIM) e a implementação dos subprogramas do POR onde se integram as atividades do mundo rural.

A segunda questão diz respeito à economia das plataformas, na sua variedade e interoperabilidade, muito em especial no que diz respeito à oferta agregada de bens comuns e a gestão agrupada multiprodutos. Para termos uma ideia da variedade desta informação de base, que pode ser objeto de uma plataforma CIM, basta elencar aqueles serviços que cabem dentro de uma rede de vilas ou cidades: serviços ambulatórios de proximidade e envelhecimento ativo, mercados de ocasião, recolha de resíduos orgânicos e compostagem, agricultura periurbana e circuitos curtos de comercialização, serviços de saúde ambulatória, serviços técnicos de agricultura de precisão, marketing territorial e certificação, serviços agroflorestais e agro paisagísticos, plataformas locais de compra e venda de bens e serviços, plataformas de formação profissional e outsourcing, plataformas de crowdfunding e financiamento participativo, plataformas de serviços veterinários e bem-estar animal, serviços digitais de suporte às plataformas locais e CIM.

A terceira questão diz respeito à necessidade absoluta, em cada NUTS II, com extensões nas CIM, de uma rede regional de formação e extensão agro rural entre as organizações socioprofissionais da agricultura, os serviços regionais de agricultura, as escolas superiores agrárias e as escolas profissionais agrícolas em íntima conexão com os centros de investigação e os centros operativos de agricultura e inovação, com o objetivo de promover uma rede de assistência técnica, estágios, um programa de bolsas e uma nova classe de profissionais necessários à transição para o universo da 2ª ruralidade.

Notas Finais

Não obstante as dificuldades do nosso rural tardio envelhecido, quero crer que a transição digital em curso é uma oportunidade única para inaugurar uma via aberta em direção à 2ª ruralidade. Neste sentido, um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da agricultura da 2ª ruralidade residirá na inibição ou no receio que sentirmos em enfrentar o modelo dominante de agricultura. Se formos capazes de assumir a liberdade da nossa contra racionalidade, iremos, também, redescobrir muitos sistemas territoriais em espaços geográficos que já considerávamos não-lugares, pois mesmo nos espaços mais críticos da baixa densidade há uma razão orgânica e virtuosa e um génio dos lugares que podem irromper a qualquer momento, se forem devidamente observados e estimulados.

A transição para a 2ª ruralidade será, se quisermos, o resultado de três convergências muito favoráveis: entre os direitos do consumidor e os direitos da natureza, entre a agricultura como espaço-produtor e a agricultura como espaço-produzido, por último, entre a pluralidade de agriculturas ecológicas e a liberdade de empreender no universo rural. Esta tripla convergência poderá dar lugar a uma fecundação e rejuvenescimento do mundo agro rural e, também, à chegada de novos atores, os neorurais, atraídos por uma nova estrutura de oportunidades no mundo rural.

Finalmente, do ponto de vista da arquitetura do território da 2ª ruralidade, terá de prevalecer a transição para a bio economia e a economia circular, em associação com a gestão do sistema-paisagem, o mosaico paisagístico e o biodesign e de acordo com as novas métricas de sustentabilidade ESG; terá de prevalecer uma nova estrutura de custos e benefícios de contexto, tendo em vista reduzir os efeitos não-intencionais, o risco moral e a multiplicação do free-raider no mundo rural; terá de prevalecer uma maior convergência entre o campo como espaço-produção e o campo como espaço-consumo, tendo em vista a construção de um novo espaço público cidade-campo onde os direitos de acesso, circulação e ordenamento ganham uma relevância crescente; por último, terá de prevalecer uma transição pacifica entre o mundo real e o universo digital de modo a introduzir diferentes culturas de risco e inovação, assim como, novas lógicas de ação coletiva (clubes, condomínios, agrupamentos, convenções) capazes de estabelecer uma conexão mais clarividente entre direitos de existência, hoje, e direitos de opção, amanhã, ou seja, uma maior e melhor justiça social intergeracional.

António Covas

Professor Catedrático na Universidade do Algarve

Produção conjunta, capital natural e serviços de ecossistema


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