As alterações climáticas vão trazer-nos mais conflitos por causa da água? Não é inevitável

Nunca houve uma guerra, um confronto militar, por causa de água. Mas as pressões sobre este recurso natural, como a escassez causada pelas alterações climáticas, podem contribuir para criar novas situações de risco.

Neste nosso mundo em que as alterações climáticas ganham terreno estarão a aumentar os conflitos por causa da água? Já houve guerras por causa da água? Fomos ver, e o que descobrimos é que, embora a escassez de água e a mudança do clima possam funcionar como multiplicadores de risco, a água tem sido mais vezes motivo de cooperação do que de conflito.

“É importante diferenciar entre guerra (no sentido de conflitos entre Estados) e conflito (incluindo violento) ao nível subnacional, ou seja, entre comunidades. Nos tempos modernos, nunca houve uma guerra entre Estados por causa de água”, disse ao PÚBLICO Susanne Schmeier, professora de Direito e Diplomacia da Água no Instituto de Educação para a Água da IHE Delft, nos Países Baixos, e gestora da parceria Água, Paz e Segurança, uma iniciativa que junta várias instituições internacionais, entre as quais o Ministério dos Negócios Estrangeiros dos Países Baixos e a Agência Alemã de Cooperação Internacional, para desenvolver ferramentas e serviços para lidar com riscos de segurança relacionados com a água.

“Até ao presente, não vimos um único grande conflito armado que possamos dizer de forma decisiva que começou devido, ou pelo menos em parte, à escassez de água”, concorda Halvard Buhaug, do Instituto de Investigação sobre a Paz de Oslo, na Noruega, cujo trabalho se foca nas dimensões de segurança das alterações climáticas e nos aspectos geográficos dos conflitos armados. “É extraordinário, e agora estou a citar um cientista muito famoso nesta área, Aaron Wolf, da Universidade do Oregon (EUA), que a água não tenha contribuído para grandes conflitos armados e guerras”, afirma.

De toda a água que existe no planeta Terra, 97% é água salgada. Só 3% é água doce e só 1% está facilmente acessível. É essa ínfima quantidade de água que todos bebemos e usamos na agricultura. Temos de a partilhar, a bem ou a mal. A maioria das vezes, sem que haja violência.

Susan Schmeier e Sumit Vij

“Pode haver conflitos locais por causa de um poço, ou um aqueduto ou linha de água, mas é mais um motivo de cooperação do que de conflito. No entanto, é dada mais atenção à possibilidade de guerras entre Estados, e isso simplesmente não acontece, não acontece há centenas de anos, e não há motivos para dizer que vai acontecer amanhã”, diz, por seu lado, Jeroen Warner, investigador da Universidade de Wageningen, nos Países Baixos, especialista em conflitos domésticos e transfronteiriços por causa da água. “Pode haver ameaças, muita linguagem desagradável entre Estados, mas não vemos um confronto militar, em que se usem armas, em que morram pessoas por causa da água.”

“Os conflitos tendem a ser multidimensionais”, diz, por seu turno, Charles Iceland, director-geral para a Água do World Resources Institute, associado à parceria Água, Paz e Segurança. “Mas sentimos que se estão a acumular indícios para apoiar a ideia de que as alterações climáticas e a escassez de recursos naturais podem funcionar como ‘multiplicadores de risco’, aumentando a probabilidade de que populações locais recorram a conflitos violentos nos seus esforços de subsistência”, completa.

“Um conflito por causa de água pode assumir diversas formas. Por exemplo, a escassez de água pode criar conflitos devido a uma competição directa, por exemplo, entre consumidores a montante e a jusante de um rio”, diz Alberto Pallecchi, gestor de programa no World Resources Institute.

Pode, no entanto, haver casos em que o elo entre escassez de água e riscos de segurança é mais indirecto: “Quando a falta de água vai dificultando a vida no dia-a-dia, aumentando as pressões nas comunidades que podem já ter múltiplos outros problemas e conflitos. A escassez de água pode assim contribuir ou desencadear uma escalada”, diz Pallecchi. “Mas ainda assim é preciso haver um contexto em que as partes em competição não consigam resolver a sua disputa de forma pacífica”, salienta.

É importante o contexto local, a história. “Em áreas onde há falta de água e onde há outro tipo de pressões que elevam o risco de conflitos, por exemplo, uma longa história de rivalidade, a escassez de água pode ser um factor de tensão adicional”, explica Halvard Buhaug. “Mas em áreas que funcionam bem, historicamente estáveis e pacíficas, é muito menos provável que a escassez de água, só por si, tenha um efeito considerável no risco de conflitos”, conclui.

Inspiração no petróleo

A ideia das guerras pela água entrou no imaginário global muito graças a uma frase, dita em 1994, por Ismail Serageldin, então vice-presidente do Banco Mundial: “Se as guerras deste século [XX] se fizeram por causa do petróleo, as guerras do próximo século far-se-ão por causa da água – a não ser que mudemos a nossa abordagem à gestão deste recurso precioso e vital.” Esta frase encaixou-se bem no imaginário colectivo porque já se fazia investigação, pelo menos desde a década de 1980, sobre água e conflito – tendo por base a situação no Médio Oriente, uma das áreas mais sujeitas a stress hídrico do mundo. E onde existe um outro recurso natural que poderia servir de modelo.

Combatentes curdos peshmerga guardam a barragem de Mossul, no Iraque, que o Estado Islâmico tentou controlar em 2014

“Todas as conversas acerca de ‘guerras da água’ são construídas segundo o modelo das questões em torno do petróleo. Na década de 1980, comparava-se o petróleo com a água, para dizer que tem havido muitos conflitos, nomeadamente no Médio Oriente, que é a geografia de onde emergiu toda esta questão das ‘guerras da água’”, disse Sumit Vij, também da Universidade de Wageningen, especialista em alterações climáticas e políticas ambientais e gestão da água. Sumit ​Vij redigiu, em Janeiro, com Jeroen Warner, um artigo defendendo a ideia de que não haverá uma guerra pela água, publicado no blogue New Security Beat, do programa de Alterações Climáticas e Segurança do Wilson Center, um fórum de reflexão e investigação que aconselha o Congresso e o Governo dos Estados Unidos.

O Médio Oriente, a África e a Ásia, em especial a fronteira entre a Índia e o Paquistão, foram definidos como os pontos mais sensíveis ao desencadear de conflitos por causa da água. “É muito interessante, coincidem todos com zonas de conflito históricas, que não têm nada a ver com água”, salienta Sumit Vij.

“Se olharmos para o caso do Sul da Ásia, o principal ponto de tensão é entre a Índia e o Paquistão, que vivem um conflito histórico desde o período colonial. Mas esses dois países assinaram um tratado […]

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