Francisco Gomes da Silva

As barragens e Daniel Oliveira – a evaporação da decência intelectual – Francisco Gomes da Silva

Meu caro Daniel Oliveira

Costumo gostar de o ler e de o ouvir, o que faço com alguma frequência. Por isso, confesso, o texto que publicou ontem no Expresso sobre Catarina Martins, barragens e evaporação, intitulado “A cultura Twitter evapora a política” constituiu uma profunda desilusão. Não por nele discordar de mim, pois em relação a muitos dos assuntos sobre os quais escreve e fala, não partilho os seus pontos de vista e opiniões, o que não me impede, repito, de gostar de o ler e ouvir. Esse não é o meu problema.

A minha desilusão decorre do facto de, para criticar legitimamente aquilo que transmiti ao jornalista do Público, o Daniel ter tido a necessidade de insinuar que as minhas opiniões eram tão-só condicionadas por seis crimes de lesa-majestade, a saber: (1) ser engenheiro florestal (proclamo a minha inocência, porque não o sou) e professor do ISA (nem tento defender-me), (2) ter sido ex-secretário de estado de Passos Coelho (confesso a minha culpa), (3) ser diretor geral da Agroges (sem perdão, não só porque o sou de facto como ainda por cima sou um dos seus sócios fundadores, ou seja, sou origem do próprio mal) que, imagine-se, “faz aconselhamento para grandes empresas como a Monsanto” (foi a única que lhe saltou à vista?) e (4) por representar projetos agrícolas desastrosos (do ponto de vista do uso da água, suponho). Acrescenta ainda que (5) tenho interesses económicos no regadio, e que (6) o regadio e as barragens são absolutamente centrais no trabalho que a Agroges desenvolve.

Para quem não teve a possibilidade de ler o seu texto, de acesso restrito a assinantes ou a quem tenha comprado o Expresso no passado fim-de-semana, deixo AQUI o link, para que o possa ler. Note que, em minha opinião, esta sua relação comercial com uma grande empresa capitalista, não o coloca ao serviço dos seus interesses nem limita a sua liberdade intelectual.

A sério mesmo, caro Daniel? Precisa disto para discordar de mim ou para defender a razão de uma afirmação de Catarina Martins? Como lhe disse no início, esperava um pouco mais de si. Mas deixo-lhe alguma informação adicional, caso lhe interesse.

Não consegui ainda alcançar a relevância, para este assunto, de ter sido secretário de estado do governo maldito, mas certamente terá alguma. É uma referência a más companhias? É uma tentativa de menorização ética, intelectual ou cívica de quem pertenceu a tal governo? Explicar-me-á, se entender que tal explicação é relevante.

Quanto à Agroges. A Agroges é uma pequena empresa com 30 anos de atividade, que trabalha arduamente para garantir o emprego a cerca de 20 pessoas altamente qualificadas, e que presta serviços de consultoria nos vastos domínios da agricultura, floresta e respetivas indústrias. Tem mais de 1000 clientes, nas mais diversas áreas. A Monsanto (que lhe deve estar a agradecer a publicidade), no que representa para a atividade da Agroges e do seu volume de negócios, está na lista dos clientes com menor significado: num volume de faturação de cerca de 1 milhão de euros anuais a Monsanto vale 4 mil euros. Mas esse foi o exemplo que decidiu escolher. Se escolhesse algum dos muitos pequenos agricultores a quem a Agroges presta serviços, o seu escrito ficava estragado? Se referisse o envolvimento da Agroges em trabalhos centrados na agricultura biológica, crescia-lhe alguma borbulha no nariz? Poderia ter-se referido ao envolvimento da Agroges com diversos clientes em estudos e projetos sobre sustentabilidade ambiental, sobre neutralidade carbónica, sobre a definição de modelos de gestão mais eficientes (nomeadamente no uso da água e energia, mas também de outos recursos), sobre a circularidade da economia nas fileiras de base agrícola e florestal, e por aí fora. Imagine, caro Daniel, que a Agroges até conta com ONGs Ambientais entre os seus clientes. Veja, portanto o relevo da alusão à Monsanto. Mas foi, certamente inocente, e para a próxima procurará informar-se melhor.

Refere que eu represento “projetos agrícolas desastrosos” e que “tenho interesses económicos no regadio”. Aqui não se percebe bem, caro Daniel, se sou eu ou a Agroges. Ou ambos. Quanto ao adjetivo desastroso, aguardarei que possa dizer qual ou quais são os projetos que lhe merecem tamanho repúdio. Certamente que os conhece bem, pois duvido que utilizasse tal qualificação de ânimo leve. Os interesses económicos que tenho no regadio são muito claros: tenho a meu cargo uma exploração agrícola que é, efetivamente de regadio. Na qual procuro aplicar as melhores práticas agronómicas incluindo, nas rotações que pratico, culturas de sequeiro, a bem da conservação do solo e dos recursos naturais a ele associados. Curiosamente essa exploração não utiliza água a partir de nenhuma barragem. É preciso azar!

Se os interesses económicos inconfessáveis são da Agroges a coisa ainda é mais simples. O regadio faz parte da realidade agrícola nacional, com a qual a Agroges lida diariamente. Bem como o sequeiro. Bem como muitos outros elementos determinantes para os sistemas de agricultura que temos no país. Está, por isso, no âmbito da atividade da Agroges. Mas que fique claro: defendo, enquanto técnico (a seus olhos certamente mal formado e mal intencionado) que o regadio é peça chave para o nosso futuro. Não a qualquer custo, não em qualquer circunstância. Mas, ainda assim, peça chave.

Finalmente, que as barragens são absolutamente centrais para o trabalho da Agroges. Está confuso, Daniel. O que é absolutamente central para o trabalho da Agroges é a nossa competência, que faz com que os nossos mais de 1000 clientes insistam em procurar-nos, o que nos enche de muito orgulho. Com barragens ou sem elas. Não o vou maçar com números, pois certamente que os conhece (se não, não teria a veleidade de escrever o que escreveu), mas terei todo o gosto em enviar-lhe todos aqueles de que precisar para avaliar a enormidade da sua afirmação.

Caro Daniel Termino como comecei: esperava muito mais de si. Mesmo estando o Daniel, como escreve, “a léguas de ser um especialista” e de “não ter sequer uma opinião sobre o assunto”. Porque aquilo que aqui me interessa nada tem a ver com a matéria que diz ignorar. Tem a ver com valores e respeito pela independência de terceiros, no que sempre pensei que o Daniel fosse mais especializado. Mas como diz o ditado, vamos vivendo e aprendendo.

Ao jornal Expresso, no exercício do direito de resposta ao artigo de Daniel Oliveira, “A cultura Twitter evapora a política”, publicado no Expresso on-line a 12 de setembro de 2019.

Francisco Gomes da Silva

Professor do Instituto Superior de Agronomia e sócio fundador da AGRO.GES


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