Carlos Neves

As lutas do leite – Carlos Neves

Produzir leite exige uma luta constante no campo, na vacaria e “da porta para fora”. Nos campos lutamos para produzir forragem para alimentar as vacas, sobretudo milho, com as sementeiras, a rega e a colheita para silagem, sem esquecer depois a cultura da erva no outono-inverno.

Na vacaria, a alimentação a ordenha e os restantes cuidados das vacas exigem uma luta permanente, 365 dias por ano. São muitos aspetos que exigem cuidado, atenção e um elevado profissionalismo por parte dos produtores e técnicos que dão o apoio especializado a uma atividade onde só sobrevivem os mais eficientes.

“Da porta para fora”, a luta dos produtores reparte-se entre a procura de fatores de produção ao menor preço e a valorização do leite produzido ao melhor preço possível. Nos últimos anos, o preço recebido pelos produtores não foi um preço justo, pois não permitiu cobrir os custos de produção, pagar o trabalho de produtores, funcionários e familiares e compensar o valor investido em terrenos e equipamentos. Isso causou abandonos, falências, desânimos e revoltas. Muita dessa revolta perdeu-se em desabafos à mesa do café ou nos murais do facebook. Outra organizou-se, por toda a europa e também em Portugal, em pequenas ou grandes ações concretas para benefício de toda a fileira.

Uma das formas de luta a que dediquei longas horas foi a comunicação. Comunicar é “pôr em comum”, partilhar informação útil, de forma gratuita, para melhor cultivar os campos, cuidar dos animais ou valorizar o leite produzido. Quanto vale essa informação? Houve um tempo em que os produtores não sabiam o preço do leite no resto da europa e “engoliam” facilmente um gráfico devidamente arranjado para os sossegar ou uma história contada por alguém para destabilizar. Hoje sabemos que estamos vários cêntimos/litro abaixo do preço médio do leite na Europa e que os produtores de leite em Portugal não puderam até hoje aproveitar o período de “vacas gordas” como os seus colegas do norte da Europa para pagar as dívidas e acumular reservas para quando chegar a próxima crise – e a falta de visão que conduz a isto vai ter consequências negativas em toda a fileira.

Também comunicámos “para fora”, através da comunicação social. Foi assim que os responsáveis políticos e a sociedade souberam da crise que afetou a produção de leite e souberam também como podiam e deviam ajudar, por exemplo, legislando pela rotulagem da origem do leite e consumindo produtos lácteos nacionais, por serem produtos de qualidade garantida cujo consumo também tem efeitos positivos na economia nacional e em particular no meio rural. Tivemos sempre o cuidado de mostrar explorações limpas, modernas, com futuro, se receberem o preço justo pelo leite produzido. Não tivemos como objetivo obter mais subsídios de Bruxelas, mas foi da luta dos produtores, dos que deram a cara e saíram à rua, que resultaram algumas ajudas extraordinárias necessárias para ultrapassar os momentos difíceis que se viveram.

Nos momentos de maior desespero, algumas vozes pediam ações de violência, tal como bloqueios, para “resolver as injustiças do setor”. Não fomos por aí, conscientes que os agricultores tinham vacas para ordenhar no fim da manifestação e pouco tempo disponível para ir a tribunal ou á esquadra. E também considerámos que precisávamos do apoio da população, dos consumidores dos nossos produtos, e qualquer ação hostil poderia rapidamente voltar-se contra nós. Havia que pressionar com inteligência, paciência e persistência.

Cativámos o consumidor, pressionámos os governantes a agir e construímos pontes de união e cooperação entre produtores, associações, cooperativas, industrias e distribuição para defender o leite como alimento bom e valioso. Mas há ainda muito trabalho a fazer para que o valor do leite chegue de forma justa até ao produtor. Será preciso repetir manifestações à porta de fábricas de lacticínios? Se houver visão de futuro por parte da indústria não será necessário chegar a essas ações excecionais, sobretudo quando se trata de indústrias pertencentes aos produtores, e precisamos ter consciência que não se governa uma cidade cercando-a por fora das muralhas, governa-se por dentro.

Os produtores não se podem calar nem resignar ao fado de que “não se pode controlar o preço de venda do leite”. As escolhas que fazemos têm consequências. Já assistimos, em Portugal, na Espanha e noutros países da Europa, a enormes diferenças de preço entre produtores da mesma rua, por causa das opções feitas pela sua cooperativa ou comprador privado. Ainda agora ouvimos o presidente de uma grande cooperativa do norte da Europa a puxar pelo preço e avisar os consumidores que a manteiga pode faltar, a anunciar preços ao produtor perto dos 40 cêntimos, enquanto aqui na península ibérica temos grandes empresas de laticínios com preços pequenos e uma visão curta de amealhar o máximo enquanto o produtor aguentar. Acordem! Temos de mudar de rumo!

 

Carlos Neves

Produtor de Leite na Cooperativa de Vila do Conde e Vice-presidente da APROLEP


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