A Ministra da Agricultura assumiu ser uma pessoa de fé e, apesar de S. Pedro a ter deixado ficar mal até hoje, não a vou crucificar por isso, primeiro porque eu, tal como maioria dos agricultores, comungo da mesma fé, segundo porque já passaram centenas de anos desde que se condenavam os infiéis à fogueira e também outras dezenas de anos desde que se perseguiram os fiéis. Respeitemos portanto a fé de cada um, mas aproveitemos a herança judaico-cristã para beber na história e no livro dos livros alguns ensinamentos úteis ao nosso presente e futuro.
Por estranho que pareça, ocorreram-me estas reflexões ao ler uma mensagem enviada por uma cooperativa aos seus associados a justificar uma descida do preço do leite “face à descida acentuada do preço do leite em todos os países europeus, ao excesso de produção e à retracção do consumo”. A confirmar-se essa descida de preço na Europa, consequência de um aumento de produção, que por sua vez resultou do aumento do preço, resta-nos deixar neste muro de lamentações a nossa indignação pelo facto de só chegar a Portugal a baixa do preço do leite ao produtor: Nos últimos dois anos, quando o preço na Europa subiu e se manteve consistentemente acima do preço médio português, o mercado europeu não afectou os nossos preços. Agora que desce, porque temos acompanhar a evolução mantendo a diferença negativa? Temos de lamentar, por isso, que nos tenham impedido de aproveitar esse período de vacas gordas para acumular reservas, tal como José recomendou ao faraó, para se precaver dos anos de fome ou de “vacas magras”, tudo isto antes dos Judeus deixarem o Egipto a caminho da terra prometida (onde corria “leite e mel”). Como vamos agora enfrentar a nossa travessia do deserto?
Foi precisamente durante a travessia do deserto, já no tempo de Moisés, que os Judeus esqueceram o seu Deus e adoraram um bezerro de ouro, como faziam os egípcios. Hoje as vacas sagradas são mais conhecidas na índia, mas não teremos nós, no nosso sistema socioeconómico, alguns ídolos adorados por consumidores, comentadores e políticos? Não serão eles a causa da magreza contínua da nossa produção?
Depois de sucessivos apelos, quando já suspeitávamos estar a “pregar no deserto”, eis que o governo avançou com a PARCA, Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agro-alimentar. Em artigo recente no Expresso, a Ministra da Agricultura, reconhecendo ser necessário “ reequilibrar as relações entre agricultores, indústria e distribuição” por ser “uma realidade a posição de fraqueza negocial dos produtores nas relações com a indústria e com a distribuição”, afirma o empenho do Governo em “promover um diálogo construtivo e consequente”, através da PARCA, referindo ter já sido alcançada a primeira etapa: assegurar a transparência na formação do preço (…)” Será? Vamos saber o valor das facturas, devoluções, descontos, atrasos de pagamento, promoções?… Esperemos então por Maio, mês de fé, mas sobre resultados da PARCA, quero “ver para crer”, como S. Tomé.
E agora, que fazer, com os preços da palha, gasóleo e rações a subir, ervas pequenas e atrasadas, poços com pouca água, terra seca e o preço do leite a baixar ao produtor? Rezar? Para os crentes, certamente, e não apenas por chuva, mas também para que o Espírito ilumine os que tem o poder de decidir. Mas a todos, crentes ou não, pode servir de inspiração e aviso a parábola do Juiz e da viúva (Lc 18, 2-5): «Em certa cidade, havia um juiz que não temia a Deus nem respeitava os homens. Naquela cidade vivia também uma viúva que ia ter com ele e lhe dizia: ‘Faz-me justiça contra o meu adversário.’ Durante muito tempo, o juiz recusou-se a atendê-la; mas, um dia, disse consigo: ‘Embora eu não tema a Deus nem respeite os homens, contudo, já que esta viúva me incomoda, vou fazer-lhe justiça, para que me deixe de vez e não volte a importunar-me.’»
Carlos Neves