Biotecnologia: Onde estamos e para onde vamos? Uma reflexão sobre as propostas actuais da Comissão Europeia – Jaime Piçarra

Há precisamente 10 anos, numa das edições da revista da IACA (“Alimentação Animal”) demos grande destaque ao tema da Biotecnologia, com o título “OGM: Sim ou Não?” e, em Maio de 2001, com o apoio e colaboração da ASA, CAP e FLAD, organizámos uma Conferencia Internacional sobre Biotecnologia intitulada “Informar para Decidir”, procurando partilhar e fornecer informação para uma decisão consciente tendo em vista a aprovação de OGM com base em evidências científicas, garantindo a segurança para a saúde animal e humana e a protecção do ambiente decorrente da autorização e comercialização dos eventos transgénicos. A IACA sempre se preocupou com a formação e informação, defendendo a livre escolha dos OGM, desde que aprovados pela EFSA, considerando que a biotecnologia constitui uma ferramenta que tem de ser avaliada e monitorizada, caso a caso, de acordo com os diferentes eventos. No entanto, pelas potencialidades que encerra, é um instrumento que não pode nem deve ser desperdiçado, sobretudo tendo em conta os enormes desafios que temos pela frente.

Perguntar-se-á o que mudou 10 anos depois? Infelizmente, ao nível da União Europeia, as divisões do passado aumentaram com o alargamento a 27 Estados-membros; as discussões continuam a ser condicionadas por determinados grupos de pressão que questionam as avaliações da EFSA, alimentados pela emoção e não raras vezes por questões de natureza ideológica. As aprovações dos eventos têm sido assumidas pela Comissão sobretudo ao nível das importações mas é no cultivo que os problemas assumem maiores clivagens apesar da coexistência ter avançado e ser considerada uma boa legislação, sobretudo no caso português. Os OGM são rigorosamente controlados e os produtores de milho geneticamente modificado têm regras restritivas desde a sementeira até à colocação do produto no mercado. Entretanto, nestes 10 anos, a globalização tornou-se um fenómeno crescente e irreversível, a expansão da biotecnologia agrícola é uma realidade indesmentível a nível mundial, sobretudo nos países nossos fornecedores de matérias-primas e concorrentes nos mercados da produção animal, designadamente o Brasil, Argentina ou os EUA mas também o Canadá, a China e a Índia.

O incremento das trocas comercias e a maior dependência da Europa em proteína depois da eliminação das farinhas de carne criou enormes problemas no mercado europeu, cujos decisores têm insistido numa política cega de tolerância zero a eventos aprovados em países terceiros mas ainda não autorizados, apesar do parecer positivo da EFSA. Têm-se sucedido os incidentes, sobretudo desde 2005, ganhando maior expressão em 2007 com o milho Herculex (antes tinha acontecido com o Bt 10) que conduziu ao desaparecimento do corn glúten feed e destilados de milho que importávamos dos EUA. Ainda em 2009, tivemos novos problemas com um evento de milho não autorizado na União Europeia presente na soja e que conduziu a problemas de abastecimento desta matéria-prima em muitos países europeus. Depois de muitas reuniões em Bruxelas e com as autoridades nacionais e de enormes preocupações em toda a Fileira, que tem de suportar custos acrescidos de toda esta política, os eventos acabam por ser aprovados… até à próxima crise.

A questão é ainda mais complexa no futuro porque está prevista a aprovação de 120 novos eventos até 2015 e a manutenção da política de tolerância zero pode criar ainda maiores dificuldades ao nível do aprovisionamento de matérias-primas para a cadeia alimentar que teve de suportar mais de 4 mil milhões de € no período 2007/2009 como resultado destes incidentes.

Deste modo, o regresso à Biotecnologia como tema de reflexão justifica-se porque estão “em cima da mesa” duas iniciativas da Comissão que podem dar um novo impulso à actual discussão na União Europeia, embora se admita o regresso dos fundamentalismos do costume: o fim da tolerância zero (LLP-Low Level Presence) e uma nova abordagem sobre as autorizações para cultivo de OGM.

Quanto ao LLP, reconhece-se que o sector não pode conviver com a situação actual e deverá ser avançada uma tolerância de 0.1% (que poderá ir até aos 0.3% devido aos desvios nos métodos de análise), contemplando apenas a alimentação animal. Trata-se de uma proposta minimalista e que tem de ter em conta toda a cadeia alimentar, como de resto foi referido no processo de consulta inter-serviços. Relativamente ao cultivo, é proposta a nacionalização das autorizações, ou seja, cada Estado-membro terá a liberdade de decidir se pretende cultivar transgénicos no seu território. Compreende-se a motivação da proposta porque existem países que querem avançar mais rapidamente e são bloqueados por aqueles que são hostis aos OGM mas trata-se de um precedente perigoso que não só põe em causa as decisões científicas como compromete a construção do Mercado Único e a livre circulação de produtos e não deixará de criar uma enorme confusão e percepções erradas nos consumidores porque dificilmente compreenderão as razões porque um Estado-membro ou uma região decide não autorizar determinado evento geneticamente modificado. Apesar do Comissário Dalli garantir que não podem estar em causa decisões baseadas nos riscos ambientais ou de saúde animal e humana mas apenas considerações de natureza ética ou sociais dos cidadãos. Por todas estas incertezas, o projecto não entusiasma os Estados-membros como ficou vincado nas recentes discussões dos ministros da Agricultura e do Ambiente.

Estamos certos de que estas 2 propostas vão conduzir a um intenso debate, quer ao nível nacional e europeu, quer nos Conselhos Agrícola e do Ambiente, Parlamento Europeu e organizações sectoriais, com os anti-transgénicos a assumirem as posições do costume, alheios às realidades dos mercados, à necessidade de termos uma legislação clara, exequível e controlável e pouco preocupados com os impactos económicos e sociais. Infelizmente, sobretudo em Portugal, continua a faltar uma participação da Sociedade Civil sobre este debate.

Aqui reiteramos posições já assumidas anteriormente.

Não é legítimo que se permita a importação de carne, leite e ovos de países terceiros, provenientes de animais alimentados com matérias-primas autorizadas nesses países e que são negadas à Indústria europeia assim como não é sensato limitar o acesso aos agricultores europeus de uma tecnologia que pode melhorar a sua competitividade. Trata-se de uma distorção de concorrência que comprometerá o futuro da agricultura e da indústria agro-alimentar europeias e a participação da Europa num mercado mundial em claro crescimento e com fortes competidores como o Brasil, os EUA ou a China. Será então necessária uma maior coerência entre a política europeia e a estratégia assumida recentemente pela Comissão no horizonte 2020.

No entanto, mais importante é o facto de que em todo este debate, não pode vencer a política do medo e do ruído mas a da ciência e do conhecimento.

Essa seria a melhor notícia para os europeus, agricultores, industriais e consumidores!

Jaime Piçarra
Engº Agrónomo, Secretário-Geral da IACA

Apoio da Sociedade Civil versus Compromisso Político: Um contributo para o Debate sobre a PAC pós-2013 – Jaime Piçarra


Publicado

em

por

Etiquetas: