Henrique Pereira dos Santos

Bons planos – Henrique Pereira dos Santos

Aurora Carapinha, primeiro minha colega, depois minha professora, fez um comentário sobre a serra da Estrela que transcrevo parcialmente:

“Estrela, a serra, que arde.
Tudo estava lá: a serra ,a sua orografia, a seca severa, as alterações climáticas,o abandono rural. Tudo estava lá.
O que é que lá não estava?
Não estava lá um conjunto de medidas que estão definidas em vários estudos , que foram desenvolvidos ao longo de vários anos ,sobre gestão florestal, abandono rural, alterações climáticas mas que não são implementadas e são guardadas em gavetas dos vários ministérios porque parece que basta fazer os estudos ( fazendo lembrar Umberto Eco quando afirmava que se confundia tirar fotocópias de um livro com ler o livro) .
A Estrela arde … e já falam novamente em produzir mais estudos ( não sei se haverá tanta gaveta para tanto estudo) .
Haverá , talvez, estudos em falta ,mas talvez fosse bom começarmos a implementar as medidas dos vários estudos que se têm desenvolvido ao longo de muitos e muitos anos. Haja vontade política para as implementar.
Não as implementar isso sim é negligência.”

Por coincidência, Franciso Rego (com quem fiz um ou outro trabalho e que conheço pessoalmente há anos), na mesma altura, a propósito da intenção de avaliação do fogo da Estrela (e, já agora, de todos os maiores), diz em entrevistas esta semana que há um conjunto de coisas propostas pela comissão a que presidiu, que não foram aplicadas por isto ou aquilo, sendo o problema a falta de vontade em aplicar o proposto.

Os dois, e não são os únicos, repetem um velho mito: temos planos muito bons para gerir a paisagem, mas alguém, por razões obscuras, não os quer aplicar, do que resultam os péssimos resultados que são relevantes na altura (podem ser os fogos, podem ser as cheias, pode ser a qualidade estética, pode ser a expansão das monoculturas, o despovoamento, a perda de solo, enfim, o que se escolher na altura como péssimo, resulta do facto de alguém não aplicar os excelentes planos e propostas que existem).

Sempre que ouço este argumento lembro-me de duas pessoas: Ilídio de Araújo e Carl Steinitz.

O primeiro, porque há muitos anos escreveu que o mais relevante de um plano é o que sobraria se no dia da sua apresentação um mafarrico qualquer queimasse todos os seus elementos materiais.

O segundo porque passou o tempo todo das aulas que tive com ele para o meu doutoramento a afirmar que “a boa tese é aquela que está acabada”.

Eu tendo a dizer que aos planos se aplica o mesmo critério de avaliação: o bom plano é o que é aplicado, a generalidade dos que não são aplicados não sofrem nenhuma perseguição, são simplesmente maus porque são inaplicáveis.

O plano serve a gestão, se a gestão não aplica o plano é, frequentemente, porque quem fez o plano achou que a sua missão era definir a gestão e não servir os propósitos da gestão.

Para não sair dos fogos e das soluções que têm andado na berra, posso dar o exemplo de uma proposta de plano (ainda em fases preliminares, não acredito que as suas propostas finais sejam essas, mas serão outras influenciadas por estas ideias) que pretendia transformar a paisagem de um concelho reduzindo a área de pinheiro e eucalipto de mais de 70% da área do concelho para menos de 10%, sem explicar como, com que pessoas, com que recursos, servido porque economia, dando resposta a que aspirações de vida das pessoas e com base na ideia mágica de que, fazendo isto, ficava resolvido o problema dos fogos.

É verdade que a generalidade dos planos e das propostas que existem não chegam a este extremo de desfasamento em relação à realidade, mas o seu distanciamento em relação ao quotidiano concreto, das pessoas concretas, a que a gestão tem de dar respostas concretas, é mais que suficiente para o seu destino habitual: a gaveta.

Não se pense que isto resulta de haver algumas pessoas que vivem nas nuvens, mesmo estratégias longamente trabalhadas por centenas de pessoas, por vezes aprovadas por unanimidade ou esmagadora maioria na Assembleia da República, como a estratégia para as florestas, da conservação da natureza, a lei de bases do ambiente, têm o mesmo destino: não há governo (e parlamento, e sociedade) que consiga executar o que lá está previsto (como a estratégia nacional de defesa da floresta contra incêndios, para dar outro exemplo dentro do mesmo tema base).

Porque as pessoas são más, porque há interesses obscuros, porque o povo é ignaro?

Não, claro que não, é simplesmente porque em todo o processo (o tal que Ilídio de Araújo considerava realmente relevante, mais que as peças materiais dos planos), as pessoas concretas, as suas vidas, o seu quotidiano, o que fazem para ter pão na mesa e as suas aspirações, foram subvalorizadas e, por isso, resultaram em planos que não são úteis para ninguém.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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