Brasil: Qual o papel da agricultura irrigada no contexto de mitigação/adaptação das mudanças climáticas?

Estudo realizado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) indica que uma em cada nove pessoas no mundo (ou cerca de 805 milhões de pessoas) não tem comida suficiente para levar uma vida saudável e ativa. A Organização das Nações Unidas projeta que o crescimento da população mundial poderá trazer mais 2,5 bilhões de pessoas para as áreas urbanizadas até 2050.

Para atender a demanda mundial de alimentos indicada pelos estudos nessa janela de tempo de menos de três décadas, há necessidade de um aumento real na produção de alimentos de cerca de 70%. Alguns fatores, tais como as assimetrias no crescimento populacional, na produção de alimentos e na oferta hídrica, podem intensificar e ampliar as dificuldades associadas aos desafios de elevar a produção ao patamar necessário.

Grande produtor mundial de alimentos, o Brasil apresenta potencial de expansão da produção, seguindo um modelo de desenvolvimento conhecido como poupa-terra, que evita abertura de novas áreas e busca aumentar a eficiência de suas práticas agrícolas, sobretudo, com a adoção da irrigação, que traz estabilidade à produção. O País é um dos poucos com capacidade de triplicar sustentavelmente sua área irrigada. Os últimos levantamentos indicam cerca de 8,2 milhões de hectares irrigados e potencial para irrigar 55 milhões de hectares, sendo esse o maior potencial de crescimento de área irrigada no mundo.

Apesar do sucesso da agricultura brasileira, a intensificação da variabilidade climática, com implicações no ciclo hidrológico, tem trazido grande preocupação para o setor. O balanço de energia na superfície da Terra, que tende a ser nulo, é estratégico para a sobrevivência do homem. A energia que chega do sol ao topo da atmosfera terrestre é algo em torno de 1.360 W/m². Em 24 horas, em média, a superfície terrestre recebe cerca de 340 W/m². Parte dessa energia (cerca de 30%) é refletida de volta ao espaço pelas nuvens, partículas de poeira etc. antes de atingir a superfície da terra. Outra parte é absorvida pela atmosfera (cerca de 25%) e o restante (cerca de 45%) pela superfície da Terra. A energia absorvida pela superfície da Terra é utilizada no aquecimento do ar e do solo, na evaporação, na transpiração e na fotossíntese das plantas. A maior disponibilidade energética promove maior transpiração das plantas – desde que haja disponibilidade hídrica.

O fenômeno conhecido como “efeito estufa” ocorre quando a energia liberada pela crosta terrestre é refletida e retida por certos gases, poeiras, vapor d’água e aerossóis etc., impedindo o resfriamento progressivo da Terra. Sem a intervenção desses componentes, a vida não seria possível, pois o calor liberado pelo planeta se dissiparia no espaço, resultando em temperaturas extremamente baixas na Terra. No entanto, as atividades antropogênicas têm aumentado a concentração de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, de forma que o balanço de energia na superfície terrestre deixa de ser nulo e o planeta aquece além do esperado. A este fenômeno chamamos de “aquecimento global”.

Uma das consequências advindas do aquecimento anormal da terra é a alteração do clima, como, por exemplo, a frequência e o aumento dos eventos extremos climáticos, também conhecido como mudanças climáticas1. Saber lidar com esse fenômeno é um dos grandes desafios da humanidade neste século.

A partir da Revolução Industrial, o modelo de produção e consumo trouxe uma intensificação das emissões de GEE por ações humanas. Em função da resiliência e do potencial de aquecimento desses gases na atmosfera, as emissões históricas associadas ao padrão de emissões atuais, causam um grande impacto na concentração de GEE e, consequentemente, na dinâmica do carbono. Os estudos indicam que os oceanos e a vegetação têm potencial para absorver ou remover da atmosfera aproximadamente 5 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) por ano. Ou seja, se emitirmos mais do que isso, a concentração de CO2 na Terra aumentará.

Em ecossistemas não perturbados, os processos naturais costumam ser aliados do planeta na remoção dos GEE presentes na atmosfera. Eles reduzem as emissões desses gases, via de regra, com o sequestro de carbono e nitrogênio na forma orgânica, como ocorre em florestas, solos ou oceanos. Não por acaso, uma das soluções para contenção do aquecimento global é a promoção do sequestro de carbono, fazendo com que ele seja removido da atmosfera e devolvido ao sistema solo/planta ou aos oceanos.

Estudos de longa duração podem ser instrumentos importantes, seguros e essenciais para gerar informações que permitam estimar o sequestro de carbono2 do solo, mas é importante destacar que as práticas adotadas são fundamentais para esse fim. Além do carbono, outros GEE também devem ser considerados, uma vez que contribuem com o efeito estufa, entre eles: metano (CH4), óxido nitroso (N2O), dentre outros.

Ora, se o CO2 não é o único gás de efeito estufa, por que ele recebe um destaque especial? Além da sua importância para as plantas, o CO2 é o principal gás emitido no processo de combustão, e uma vez que atinge a atmosfera, permanece por muito tempo, causando efeitos de longo prazo sobre o clima da Terra. Por exemplo, estudos indicam que de todo o CO2 liberado na atmosfera mais de 50% levará 30 anos para desaparecer, 30% permanecerão muitos séculos e 20% durarão vários milhões de anos. Porém, as plantas têm elevada capacidade de remover carbono da atmosfera e estocá-lo na superfície. Isso é feito através de um processo chamado fotossíntese, em que as plantas absorvem dióxido de carbono através de suas folhas e o transforma em açúcares necessários para seu crescimento. À medida que a árvore cresce, ela consegue reter o carbono em seus galhos, raízes e tronco, desempenhando um papel fundamental na mitigação do aquecimento global.

Em 2021, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento apresentou o novo Plano Setorial de Adaptação e Baixa Emissão de Carbono na Agropecuária (ABC+), com meta de reduzir a emissão de carbono equivalente (CO2eq)3 em 1,1 bilhão de toneladas no setor agropecuário até 2030. O novo plano incluiu os sistemas irrigados como uma das tecnologias a serem apoiadas, estabelecendo como meta o aumento da área irrigada em 3 milhões de hectares, o que teria um potencial de mitigação de emissões de GEE de 50 milhões de Mg CO2eq.

Os benefícios da agricultura irrigada associados ao meio ambiente, pela redução da necessidade de aberturas de novas áreas, aumento da produção, geração de empregos, desenvolvimento social, são bem conhecidos. Já os benefícios associados às mudanças climáticas têm sido demostrados em estudos recentes, embora seja importante a continuidade de sua avaliação e quantificação.

Em quais vertentes a agricultura irrigada pode contribuir com as mudanças climáticas? As ações de enfrentamento dos efeitos negativos das mudanças climáticas geralmente podem ser divididas em duas frentes: mitigação4 e adaptação5.

A irrigação funciona como um seguro contra os períodos de incerteza hídrica, cada vez mais comuns. Na questão das mudanças climáticas, com potenciais impactos na temperatura e no regime de chuvas, a irrigação se apresenta como uma das principais tecnologias de adaptação, contribuindo para reduzir as incertezas do clima e trazendo estabilidade à produção – mas, sobretudo, contribuindo para o acúmulo de carbono no solo por meio da possibilidade de exploração de mais de um cultivo anual, adicionando resíduos de matéria orgânica ao solo, o que poderia contribuir para a mitigação das mudanças climáticas.

A incerteza maior é quanto ao uso da irrigação como uma estratégia de mitigação de emissões de GEE pois os estudos nesse sentido ainda são incipientes, havendo uma lacuna de pesquisas neste contexto. Um dos poucos estudos existentes, realizado no Oeste Baiano, mostrou que a transição do sistema de sequeiro para o irrigado, assim como a mudança de pastagem para agricultura irrigada, incrementou o estoque de carbono no solo, com valores superiores a 20,7 Mg-C/ha e 26,4 Mg-C/ha, respectivamente. O estudo revela ainda que a mudança de pasto para agricultura de sequeiro não proporcionou incremento no carbono do solo, o que só ocorreu quando houve a prática da irrigação no sistema agrícola.

Outro fator importante a ser explorado é a dependência da taxa de sequestro de carbono em relação ao teor de argila. Estudos revelam que solos com teor de argila superior a 25% favorecem o sequestro de carbono. Se compararmos alguns estudos brasileiros para o Oeste Baiano, os sistemas irrigados sequestram cerca de 6,5 vezes mais que os de sequeiro.

Essa lacuna de conhecimento precisa ser mais bem explorada e expandida para as diferentes áreas agrícolas brasileiras, sobretudo para o Bioma Cerrado, pelo seu grau de importância nesse contexto. Mas é importante destacar que as condições edafoclimáticas (de solo e clima) de algumas regiões podem fazer com que o sequestro de carbono passe a decair, se práticas robustas, combinadas e climaticamente inteligentes não forem adotadas.

Compreender os efeitos das mudanças climáticas é vital para a segurança alimentar. Nesse sentido, é fundamental avaliar os impactos ambientais causados pelas tecnologias adotadas pelos agricultores e, considerando as mudanças climáticas, verificar em que medida essas atividades geram emissão de GEE. Ou seja, se emitirem muito, é preciso desenvolver estratégias para capturar (sequestrar) mais carbono de forma a manter o balanço nulo ou negativo no sistema de produção.

A agricultura brasileira tem elevado potencial para sequestrar carbono, porém seu desempenho irá depender do tipo de sistema e de tecnologia adotada. Um bom exemplo são árvores em sistemas integrados, que podem acumular 8 toneladas de carbono por hectare anualmente. Em relação ao metano, o acordo firmado pelo Brasil na Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (COP26) de reduzir 30% das emissões até 2030, as práticas podem passar pelo melhoramento genético dos animais e pela melhoria dos alimentos consumidos pelo gado. Mas é importante ter em mente que o sequestro de carbono não é permanente: o carbono sequestrado hoje poderá ser liberado amanhã. Isso indica que as práticas devem ser contínuas e aprimoradas.

Porém, existe consenso de que o balanço de carbono deve permitir prospectar sistemas de produção passíveis de receberem créditos de carbono e de subsidiarem técnicas mais favoráveis ao meio ambiente, considerando os efeitos das mudanças climáticas por meio da adaptação e/ou da mitigação. Caso a mitigação não tenha o efeito esperado, é importante que a sociedade se adapte aos novos cenários climáticos. Isso significa aprender a viver nesse ambiente, reduzindo os efeitos negativos das mudanças climáticas. Existem várias tecnologias na agricultura que podem ser utilizadas para esse fim.

Nesse sentido, é importante avaliar holisticamente o impacto das estratégias de irrigação nos sistemas agrícolas e sua influência na dinâmica do carbono. Alguns estudos relataram que a irrigação com déficit contribui para diminuir as emissões de CO2 e aumentar os teores de carbono orgânico do solo. Diferentes volumes e frequências de irrigação podem causar diferenças significativas na distribuição de água no solo e, assim, podem afetar os processos bio-físico-químicos do solo de forma diferente, especialmente a atividade microbiana e a dinâmica da matéria orgânica.

O papel da agricultura irrigada é contribuir para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas produtivos aos períodos de seca e os riscos de perda de safra por questões hídricas. Ela tem um evidente potencial para contribuir com as mudanças climáticas como tecnologia de adaptação. Já quanto à mitigação dos GEE, o potencial também parece ser promissor; entretanto, deve ser mais estudado e mais bem quantificado para as diferentes condições edafoclimáticas presentes no ambiente agrícola brasileiro.

Lineu Neiva Rodrigues, pesquisador da Embrapa Cerrados
Alexsandra Duarte de Oliveira, pesquisadora da Embrapa Cerrados
Gabrielle Ferreira Pires, professora da Universidade Federal de Viçosa

O artigo foi publicado originalmente em Embrapa.


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