Gonçalo Almeida Simões

“Brexit, o caos e as consequências no Agroalimentar” – Gonçalo Almeida Simões

Inacreditável é dizer que no Reino Unido há já uma empresa, a Emergency Food, a comercializar as Brexit Boxes por 340 euros. Um verdadeiro kit de sobrevivência, composto por refeições congeladas, um filtro de água e um mecanismo de ignição rápida. No pior dos cenários, o Brexit é algo que pode tornar o Reino Unido num Armagedom dos tempos modernos. Disso mesmo é reveladora a carta recebida pelo Parlamento britânico e assinada por 12 grandes nomes do retalho internacional no dia 28 de Janeiro.

Os retalhistas a operar no Reino Unido começaram já a fazer stocks de produtos como atum, feijão e massa, algo impossível de reproduzir para as frutas, hortícolas, carne e peixe frescos. O espaço de armazenagem total destinado a produtos alimentares está na casa dos 80% e começa já a haver um problema de especulação imobiliária a afetar espaços destinados a armazéns.

Brexit e um novo ciclo para a UE

Nos 15 anos que trabalhei em Bruxelas, em assuntos europeus, uma das discussões mais entusiasmantes foi o ritmo e intensidade a que deveria prosseguir a integração europeia. De repente e após o referendo em Junho de 2016, patrocinado por David Cameron que se eclipsou desde então, a UE viu-se forçada a discutir uma grave ameaça ao projeto europeu: o Brexit que carrega consigo o fantasma da desintegração europeia.

No dia seguinte ao referendo, iniciou-se um novo ciclo. Da parte do Reino Unido partiram para as negociações a primeira-ministra Theresa May, que outrora fez campanha pelo Remain e Boris Johnson, Ministro dos Negócios Estrangeiros, curiosamente nascido em Nova Iorque, exatamente o mesmo que já em 1989 era correspondente eurocético do jornal inglês The Telegraph, em Bruxelas. Entretanto já se contabilizaram três secretários de estado com a pasta do Brexit, tal a complexidade e o risco político associados à gestão da mesma. Bruxelas cerrou fileiras, nomeando pontos de contacto Brexit dentro das várias DGs da Comissão Europeia, a DG AGRI não foi exceção. Michel Barnier foi nomeado como negociador chefe da UE para o Brexit, um experiente e hábil negociador que antes foi eurodeputado, comissario europeu e ministro francês da agricultura entre 2007 e 2009.

De sublinhar que um dos Estados-membros potencialmente mais afetados pelo Brexit, a Irlanda, tenha hoje como Ministro dos Negócios Estrangeiros, um ex-ministro da agricultura, Simon Coveney que liderou as negociações da Presidência do Conselho de Agricultura com o Parlamento Europeu para o acordo final da reforma da PAC em Junho de 2013. Também o Comissário Europeu da Agricultura, Phil Hogan, irlandês tem sido seguramente um dos comissários mais atentos às difíceis negociações. Afinal, em termos institucionais, o Brexit tem muito mais a ver com o setor agroalimentar do que se poderia pensar à primeira vista!

As opções do Reino Unido

Ao dia de hoje a equação não é de aritmética simples, pois ao ter sido acionado o art. 50 Tratado da UE, fixou-se a data do Brexit para o dia 29 de Março de 2019. O Reino Unido teve dois anos para se preparar, ainda assim o pânico entre os operadores económicos é total. Tendo em conta que o Reino Unido é um dos países mais desenvolvidos do mundo, membro proeminente do G7 ou do Conselho de Segurança das NU, dificilmente se anteciparia um desnorte político e logístico desta dimensão. O próprio governo britânico já informou que poderá vir a utilizar a lei marcial, no caso de haver uma corrida caótica aos bens alimentares que coloque em causa a ordem pública.

Dado que a situação política interna no Reino Unido está bloqueada restam agora quatro opções ao RU: 1) Parlamento britânico aceita o Acordo de saída; 2) Reino Unido tenta renegociar o Acordo de saída; 3) Reino Unido opta por realizar novo referendo; 4) Reino Unido decide abandonar a UE sem Acordo de saída (Hard Brexit). É importante mencionar que o Reino Unido pode ainda pedir a prorrogação da data 29 de Março de 2019, adiando o Brexit até 31 de Dezembro de 2019. Este adiamento apresenta dificuldades acrescidas para a UE que já terá levado ao limite a sua flexibilidade negocial, colocando os 27 Estados-membros numa situação de standstill paralisante. Só fará sentido a UE aceitar o adiamento do Brexit se o Reino Unido garantir que irá organizar um segundo referendo.

Para além de um problema de enorme complexidade política, o Brexit acarreta inúmeras consequências práticas ou não fosse o Reino Unido um enorme importador de produtores alimentares, pois 50% de toda a comida consumida é importada e no caso das futas chega a 70%. No caso de um Hard Brexit sem período transitório (1 abril 2019 a 31 dezembro 2020), no dia 1 de abril o Reino Unido seria considerado um pais terceiro tout court sem a proteção de qualquer acordo comercial. Alguns dias seriam suficientes para que o Canal da Mancha ficasse completamente paralisado devido aos normais controlos aduaneiros, nomeadamente inspeções fitossanitárias, ficando o Reino Unido rapidamente sem stocks alimentares.

Os planos de contingência

O Governo britânico obrigou várias indústrias e confederações sectoriais a assinar acordos de confidencialidade para impedir que os planos de contingência do Brexit sejam conhecidos do público em geral. O Governo britânico não difunde estes dados publicamente e apenas os leva para consulta física em reuniões individuais com os atores económicos, sendo que no fim das reuniões os dossiers são recolhidos.

Este tipo de estratégias contribui para uma maior dificuldade na obtenção de dados, por parte dos 27 Estados-membros, mas o Governo português teve dois anos para se preparar e não lhe deve faltar ambição ao delinear o seu plano de contingência. Sobre a livre circulação de pessoas fomos tendo algumas notícias amiúde, já no plano comercial e no que diz respeito ao impacto do Brexit para as empresas portuguesas do agroalimentar não há noticias oficiais. A simples preocupação com o problema e uma eventual oscultação que possa ter ocorrido não chegam. O tempo urge e é por isso necessário um verdadeiro plano de contingência que esteja pronto a ser implementado a partir do dia 1 de abril de 2019.

Alguns Estados-membros não só dispõem de um plano de ação como ambicionam substituir o Reino Unido em termos comerciais. Cidades como Paris, Frankfurt, Dublin, Amesterdão e Madrid investiram milhões de euros nas suas agências de comércio para captação de investimento estrangeiro, oriundo das empresas multinacionais que fogem do território britânico.

O significado do Brexit

O Brexit é significado de perdas civilizacionais e comerciais para ambas as partes, para a UE porque perde um EM histórico, uma potência económica, uma importante praça financeira, um hub tecnológico e um poderoso aliado militar. Já o RU perde um mercado de exportação de serviços e tecnologia para 27 países com 430 milhões de consumidores, menosprezando assim a sua plataforma continental histórica e dificultando o acesso a destinos de eleição para os turistas ingleses e um porto seguro para os seus pensionistas, como é o caso de Portugal.

Se realmente não conseguirmos evitar o Brexit, fica a sensação de muitas horas perdidas, primeiro na difícil adesão do Reino Unido, com tentativas falhadas em 1963 e 1967 negadas por De Gaulle, só consumada em 1977. Depois muitas horas de negociação nos vários opting outs para o Reino Unido de que são exemplos a não participação no Euro ou no espaço Schengen e ainda dois anos de intensas negociações para o Acordo de saída.

A questão que deixo para reflexão é a de saber se as muitas horas gastas nestes últimos dois anos não poderiam ter sido empregues para fazer da UE algo de que nos orgulhássemos ainda mais, fazendo desta um ponto de referência neste mundo conturbado e que tivesse um verdadeiro significado para todos aqueles que nela nascem, vivem e trabalham…

Gonçalo Almeida Simões

Especialista em Public affairs, Governmental affairs e Assuntos europeus


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