O Decreto-Lei n.º 76/2021 de 27 de Agosto transpõe para o ordenamento jurídico português a Directiva (UE) 2019/633 que visa prevenir a ocorrência de práticas ali qualificadas como “comerciais desleais na cadeia de abastecimento alimentar”. Esta designação não é inteiramente exacta à luz do Direito nacional que contempla um regime especificamente dirigido às práticas individuais restritivas do comércio entre empresas que é distinto do das práticas comerciais desleais, direccionadas para a protecção dos consumidores.
A Directiva tem presente a diferente capacidade negocial dos operadores de menor dimensão na cadeia agroalimentar, sendo os produtores agrícolas particularmente vulneráveis face aos grandes operadores e procura introduzir um nível mínimo de protecção em toda a União Europeia para pequenos e médios fornecedores que vendam a compradores de maior dimensão.
Não é alheio a este facto a circunstância de os tratados preverem a necessidade de ser assegurado um nível de vida equitativo à população agrícola enquanto um dos objectivos da Política Agrícola Comum (cfr. art.39.º TFUE).
A proibição de comportamentos restritivos do comércio poderá não se reflectir directamente nos consumidores, mas tenderá seguramente a dificultar a persistência de situações abusivas ou menos claras entre empresas. A isso acresce a circunstância de passar a existir um mínimo denominador à escala europeia que acarreta uma menor variação entre regimes nacionais, o consequente nivelamento da protecção concedida aos elos mais fracos da cadeia agroalimentar e uma maior igualdade de circunstâncias.
Portugal atrasou-se na transposição da Directiva, tendo-o feito por via do Decreto-Lei 76/2021 que tem no volume de negócios das empresas um elemento importante para avaliar as práticas negociais. É de salientar que o legislador não se circunscreveu ao sector agroalimentar, tendo aproveitado para incluir neste diploma, que altera os Decretos-Lei n.ºs 118/2010 e 166/2013(*), disposições de índole transversal, aplicáveis a todas as empresas, sobre matérias como os segredos comerciais do fornecedor, ameaças ou concretização de actos de retaliação comercial, certas imposições de pagamento sob a forma de desconto, alterações unilaterais de contratos, cancelamentos de encomendas, entre outros.
No entanto, o foco no sector agroalimentar justificou a formulação de um elenco específico de proibições assim como um outro de práticas que apenas poderão ser aceites por acordo entre as partes. A título de exemplo, passa a ser proibida a notificação do cancelamento de encomendas de produtos perecíveis num prazo inferior a 30 dias antes da data prevista de entrega, entendendo-se como perecíveis os produtos susceptíveis de se tornarem impróprios para venda no prazo máximo de 30 dias após a sua colheita, produção ou transformação, e aceite apenas por acordo a devolução pelo comprador de produtos não vendidos, sem efectuar o pagamento desses produtos, ou o pagamento do respetivo escoamento, ou de ambos.
Sendo sobejamente conhecida a criatividade quase ilimitada que quem pretende incumprir os ditames da lei coloca na respectiva ação, este diploma não escamoteia a sua função dissuasora estabelecendo coimas relevantes. O futuro dirá se o novo equilíbrio preconizado resiste às assimetrias e a relações de poder tão díspares, bem como se as alterações introduzidas no ordenamento jurídico português cumprem o propósito equilibrador que as motivou.
(*) Nota: O Decreto-Lei n.º 118/2010, de 25 de Outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 2/2013, de 9 de janeiro, e 9/2021, de 29 de Janeiro, define prazos de pagamento máximos para efeitos de pagamento do preço nos contratos de compra e venda ou de fornecimento de bens alimentares destinados ao consumo humano, enquanto o Decreto-Lei n.º 166/2013, de 27 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 220/2015, de 8 de Outubro, e 128/2019, de 29 de Agosto, pela Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, aprova o regime aplicável às práticas individuais restritivas do comércio
Consultor da Abreu Advogados
O autor escreve segundo a antiga ortografia.