Camarinha: uma espécie a conservar e multiplicar em Portugal

“Este era o sítio onde passava as minhas férias de verão. Cresci a ir ao pinhal apanhar camarinhas”, refere Margarida Coelho, mentora do Camarinha Project, referindo-se ao litoral de Ovar. Mais tarde, por volta de 2017, Margarida veio viver para esta zona, redescobriu o pinhal e percebeu que ele já não correspondia às suas memórias de infância: “o pinhal estava diferente e as camarinhas estavam a desaparecer”.

Percebeu também que as pessoas mais novas desconheciam o que eram camarinhas “e isso fazia-me imensa confusão”. As mais velhas conheciam-na e tinham até boas recordações, mas eram “recordações distantes, como se as camarinhas tivessem deixado de existir”.

Por isso, Margarida começou a divulgar informação sobre a camarinha numa página de Facebook e foi contactando pessoas que se interessaram pela conservação desta espécie endógena da nossa costa atlântica cujas populações se têm reduzido. Foi assim que, em 2018, nasceu “Camarinha Project”, o coletivo que tomou a dianteira da proteção da camarinha em Ovar.

Nesta zona, os amplos terrenos costeiros pertencem ao Município de Ovar e são geridos pelo ICNF – Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, pelo que só em 2023 o projeto obteve autorização para atuar numa área localizada no interior do Parque Ambiental do Buçaquinho e noutra no Pinhal de Ovar. Em ambas existe um coberto de camarinhas relativamente saudável, mas existem também muitas invasoras a progredir pelo seu território, nomeadamente acácias.

© Camarinha Project

Mais conhecida pelo nome da sua baga branca e comestível – a camarinha – a camarinheira (Corema album) cresce naturalmente desde o litoral norte à costa atlântica sul de Espanha (da Galiza à Andaluzia) e ao longo da costa portuguesa.

“A imagem que tinha da infância, com muitas camarinhas, tinha mudado.”

Margarida Coelho é formada em Biologia e em Medicina e doutorada na área da Genética e Evolução Humana. Exerce como médica e continua dedicada ao The Camarinha Project, de que foi membro fundador e que coordena, contribuindo, assim, para uma abordagem que considera essencial e urgente: reconectar a cultura humana e a natureza.

Desde então que o objetivo do Camarinha Project tem sido conservar as camarinhas existentes e manter em bom-estado as espécies nativas que ali crescem em associação com elas, como as urzes e os tojos, preservando o coberto arbustivo para o tornar mais resistente ao avanço das plantas invasoras. A atividade principal no terreno é o controlo destas invasoras e todos os meses, nas redes sociais deste projeto, apela-se aos voluntários para meterem mãos-à-obra – um mês numa das áreas onde atua, no mês seguinte na outra.

Nesta zona, outra das pressões a que as camarinhas estão sujeitas decorre das atividades de gestão florestal e da chamada limpeza de matos. Nem sempre são aplicadas as melhores práticas e muitas vezes são usadas máquinas enormes, que arrasam com toda a vegetação, sinaliza Margarida Coelho, alertando que é necessário continuar a sensibilizar quem faz estes trabalhos para a importância de conservar este extrato de vegetação arbustiva: “uma vez que se abrem clareiras numa zona onde há tantas acácias, essas clareiras são rapidamente invadidas e é muito difícil tanto o controlo das acácias como a recuperação dessas áreas”.

© Camarinha Project

Da “família” Camarinha Project faz parte um núcleo de uma dezena de cidadãos – Magda Moreira, Paula Costa, Eugénia Castro, Filipe Cayolla, Guilherme Alves, Cristina Ratanji, Abílio Costa, Rosa Silva e Marlene Lima – a que se juntam mais voluntários quando existem ações de sensibilização e divulgação, que decorrem habitualmente no auditório do Parque do Buçaquinho, ou as referidas iniciativas no terreno.

Muitas das ações em sala têm contado com a participação de investigadores convidados, que abordam temas relacionados com o controlo das espécies invasoras, a espécie e os seus habitats naturais – as dunas, principalmente dunas secundárias mais afastadas do mar e vales dunares, e as areias costeiras, onde surgem muitas vezes no subcoberto de pinhais.

Plantação de camarinha avança no Minho

Mais a norte, tem sido a Organização Não Governamental Ambiental (ONGA) minhota COREMA e o projeto EMC2 – Explorar Matos de Camarinhas da Costa a envolver a comunidade minhota no conhecimento desta espécie e a promover a sua presença, pela plantação de novos pés, previamente propagados.

Em outubro de 2025, cerca de 4500 pés de Corema album foram plantados na Mata Nacional do Camarido, na restinga da Foz do Minho e no cordão dunar de Moledo, faixa litoral onde, desde há cinco a seis décadas, a espécie começou a desaparecer.

A defesa das camarinhas na foz do Minho começou pela mão da COREMA, em finais dos anos 80 (século XX), mas o declínio desta população prosseguiu. Em 2016 – 2017, o projeto EMC2 “Explorar Matos de Camarinhas da Costa” veio reforçar a conservação deste símbolo do nosso património biogenético, envolvendo a academia – nomeadamente o Instituto de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) o Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE) e o Laboratório Associado Aquatic Research Network (ARNET) – as entidades oficiais, a comunidade escolar e escutista e também a COREMA.

Mata do Camarido

Foi no âmbito do EMC2 que os primeiros pedaços de caules com folhas de camarinheira foram colhidos nas dunas de Moledo e enraizados nas estufas do INIAV. As estacas que se desenvolveram começaram a ser reintroduzidas na Mata do Camarido em 2018 e várias delas formaram novos arbustos – alguns já deram fruto.

O objetivo é travar o desaparecimento local da espécie (que já aconteceu noutras zonas, tanto em Portugal como na Galiza), referiu Alexandra Abreu Lima, a investigadora responsável por este projeto, que é também bióloga, doutorada em Engenharia Ambiental e investigadora do INIAV e do MARE. E desde as primeiras plantações que o EMC2 tem vindo a capacitar os jovens das escolas de Caminha a colaborar na conservação desta população de camarinhas.

Nada disto seria possível sem os muitos trabalhos de investigação realizados em Portugal desde 2011 e apoiados por inúmeras teses de mestrado que aprofundaram conhecimentos sobre a camarinha.

Fizeram-se avanços significativos na caracterização biométrica, morfológica, fenológica (fases de desenvolvimento) e molecular da camarinha. Em paralelo, desenvolveram-se novos métodos de reprodução e melhoramento desta planta, com campos experimentais e ensaios de propagação que trouxeram resultados favoráveis principalmente por multiplicação vegetativa (estacaria) e clonal.

© INIAV

As mais recentes ações de propagação por estacaria no Minho contam já com a colaboração do Viveiro “Raíz da Terra”, em Vile, Caminha, onde milhares de estacas estão em enraizamento. Da mesma forma, foi promovida uma parceria entre o INIAV e a empresa de biotecnologia Deifil, para estabelecer uma cultura in vitro da camarinha. O material vegetal proveio de mais de 100 plantas-mãe de locais distintos, numa seleção que procura a produtividade e vigor da planta, a facilidade de colheita, a homogeneidade de maturação, a intensidade da cor e o sabor dos frutos.

Apesar dos progressos, falta ainda um longo caminho para que a produção deste fruto tenha uma escala que permita a sua comercialização. Entre os desafios, Alexandra Abreu Lima refere o desenvolvimento de um sistema de condução que viabilize a produtividade desta cultura e permita uma apanha mais eficiente da camarinha, assim como o melhoramento da planta para obter um fruto que corresponda às exigências do mercado. As sementes grandes e demasiado rijas, a alteração da cor – de branco para translúcido – e a pequena dimensão das bagas estão entre os entraves.

Enquanto a sua valorização comercial não é viável, continua a ser essencial a valorização da camarinha silvestre, protegendo e criando condições para promover na natureza a presença sustentável desta espécie endémica e emblemática.

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