Francisco Cordovil

Carta Aberta à Assembleia da República e ao Governo sobre Política Agrícola

Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República

Dr. Eduardo Ferro Rodrigues,

Exmo. Senhor Primeiro-Ministro

Dr. António Costa

Exmo. Senhora Ministra da Agricultura

Eng.ª Maria do Céu Antunes

1. Esta carta aberta incide sobre as decisões tomadas em relação à transição em 2021-2022 para o novo modelo da política agrícola que vigorará em pleno a partir de 2023 e a preparação do Plano Estratégico da PAC para 2023-2027 (PEPAC).

2. Enquanto cidadão português tenho os direitos e também os deveres que a Constituição prevê de apelar aos órgãos de soberania quando se considera que regras próprias do regime democrático estão a ser desrespeitadas.

3. As regras que considero estarem a ser desconsideradas situam-se em dois planos: primeiro, no direito de todos os cidadãos portugueses, sejam ou não agricultores, a serem ouvidos sobre as opções de política agrícola; segundo, no dever de empenhamento efetivo dos órgãos de soberania na correção das iniquidades territoriais e sociais da atual política agrícola.

4. Através do Despacho 5131/2017, de 8 de junho, do Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, foi “criado o Conselho de Acompanhamento da Revisão da Política Agrícola Comum… caraterizado por uma componente técnica independente, com recurso a destacados especialistas na matéria e por uma componente de diálogo e auscultação do setor agrícola através das suas organizações representativas.” O Conselho é composto por um Painel de Peritos e por uma Comissão de Representantes. O Painel de Peritos é constituído… por personalidades com reconhecido mérito nas áreas da agricultura e do desenvolvimento rural, onde se incluía o autor desta carta até ao dia 6 de fevereiro passado.

5. Além de outros contributos, elaborei, no exercício dessa missão, três estudos dedicados ao tema da iniquidade territorial da política agrícola com propostas para a corrigir, endereçados ao Conselho em maio de 2018, setembro de 2019 e janeiro de 2021. Consultáveis aqui: https://1drv.ms/f/s!Am797JLNjfxNhjie3M3e6V9TWzuR

6. No dia 6 do mês corrente comuniquei à Senhora Ministra da Agricultura, Eng.ª. Maria do Céu Antunes, a minha demissão do Conselho de Acompanhamento da Revisão da Política Agrícola Comum, mencionando duas razões principais: primeira, “o modo como se desenvolveu o processo de tomada de decisão sobre as medidas de transição para 2021-2022 sobre a aplicação da PAC em Portugal, porque o mesmo desrespeitou, por omissão de informação e de consulta, o relacionamento normal com o Painel de Peritos”; e, segunda, porque considerava que aquelas decisões contrariam princípios fundamentais do que deve ser a política agrícola nacional, em particular no domínio da equidade territorial e social.

7. Nos pontos seguintes resumo os dados e conclusões sobre a iniquidade da PAC e sintetizo as propostas apresentadas para se corrigir essa situação, no sentido de uma maior igualdade de tratamento dos diversos territórios e tipos de agricultura. No final fundamento a afirmação de que as decisões que têm sido tomadas pelo Ministério da Agricultura não contemplam princípios e objetivos fundamentais de equidade.

8. O primeiro relatório para o Painel de Peritos – Política Agrícola e Equidade Territorial no Limiar 2020, de abril de 2018, inclui um diagnóstico da intensidade e das causas das desigualdades regionais no acesso ao financiamento público dos dois pilares da PAC, quer para 2014-2020 quer para o limiar 2020 (2019). E integra alguns cenários no sentido de uma maior equidade territorial. O relatório mais recente – Cobertura do Território Agrícola do Continente pela PAC e Equidade. Síntese, foi ultimado no passado mês de janeiro. Na senda do primeiro, apresenta critérios objetivos de operacionalização do conceito de equidade territorial e quantifica as suas consequências.

9. Destaco dois dos aspectos das propostas de reafectação de recursos. O primeiro decorre do objetivo de abertura do sistema aos milhares de agricultores e de hectares que não integram o universo apoiado pela PAC. O segundo é uma alternativa à atual aplicação dos meios da PAC. Esta tem estado ligada à extensão das áreas agrícolas, sejam estas cultivadas ou não, produzam ou não alimentos e outros bens e serviços com utilidade social, criem ou não emprego. Em alternativa, os critérios de equidade territorial que proponho ponderam em 20% a 30% o volume de trabalho e atribuem maior peso às áreas cultivadas e com custos unitários e utilidade social (económica e/ou ecológica) superiores, do que às restantes.

10. A maior inclusão de agricultores e áreas e a ponderação de novos critérios de afetação da despesa pública da PAC implicam uma mudança da repartição territorial dos apoios.

A título de exemplo, o cenário quantificado na parte final do último relatório (pp. 31-34), indica uma redistribuição com perdas do Alentejo e subidas da fachada atlântica (Noroeste, Transição Centro e Estremadura) e do Algarve. E permite quantificar a proporção das alterações de quota regional resultantes, respetivamente, da entrada de novos agricultores e áreas ou da ponderação de novos critérios de equidade: por exemplo, a melhoria de 7% da quota do Noroeste Atlântico deve-se quase por inteiro à ponderação dos critérios volume de trabalho e área irrigável (6,5%); ao invés, a melhoria de 3,3% da Estremadura decorre em 2,9% do alargamento do universo beneficiado.

11. O Ministério da Agricultura não define critérios objetivos de equidade territorial e justifica as suas opções com base no argumento de evitar quebras de rendimento dos atuais beneficiários, o que implica sacrificar outros critérios e objetivos. Nas decisões sobre a transição da PAC em 2021-2022, a Senhora Ministra da Agricultura decidiu transferir uma verba anual substancial dos recursos do 2º Pilar (Desenvolvimento Rural) para os apoios diretos ao rendimento. A principal justificação invocada foi a necessidade de compensar os setores afetados pela convergência interna dos valores dos pagamentos do regime de pagamento base. Mas não se indicou o que vai ser sacrificado no segundo pilar e por que será prescindível.

12. Esta inconsistência da fundamentação, por omissão, é agravada por outros dois tipos de fatores. O primeiro e mais visível consiste no facto de entre os setores mais beneficiados pela transferência do 2º Pilar para pagamentos diretos do 1º Pilar se contarem os setores do Leite e do Tomate, onde se verificaram nas últimas três décadas drásticos processos de concentração económica e territorial, com o desaparecimento de muitas dezenas de milhares de produtores.
O segundo é menos evidente, pois exige conhecimento das diferenças estruturais entre as alocações dos recursos de cada um dos Pilares. Esclareça-se. Por um lado, ao tirar-se dinheiro do 2º Pilar, salvo indicação precisa do que vai ser sacrificado, há uma elevada probabilidade de nas vítimas se incluírem, e com penalização significativa, dotações para objetivos vitais como o investimento, a inovação e a gestão de riscos. Por outro, a afetação territorial dos meios do 1º Pilar beneficia, por razões estruturais e políticas, determinadas regiões (Alentejo, destacado), enquanto os meios do 2º Pilar são proporcionalmente mais importantes para outras regiões (Noroeste, Centro Litoral, Oeste e Península de Setúbal Algarve). Há assim uma alta probabilidade desta transferência ter implicações perversas nas prioridades de política e na equidade territorial.

13. O Governo não infringiu qualquer norma legal, nem exorbitou das suas competências, quando decidiu transferir 85 milhões de euros por ano do Desenvolvimento Rural para apoios ao rendimento no 1º Pilar. O que falta então? Faltou a fundamentação suficiente dessa decisão perante os portugueses, que elegem a Assembleia da República e são os legítimos destinatários de recursos, como os do FEADER, pagos pelos contribuintes e destinados à prossecução do interesse público.

***

Resta-me concluir esta carta com três apelos.

Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República

Dr. Eduardo Ferro Rodrigues,

Exmo. Senhor Primeiro-Ministro

Dr. António Costa

Exmo. Senhora Ministra da Agricultura

Eng.ª Maria do Céu Antunes

Dirigindo-me a V. Exas como responsáveis pelo exercício de funções políticas de representação popular, legislativas e executivas:

Apelo ao respeito do direito à palavra e ao diálogo político democrático

Os cidadãos ou instituições que interpelam, de forma direta o poder político, como tem acontecido com o questionamento das distorções da atual PAC por parte de algumas entidades representativas da diversidade regional de Portugal, devem ser escutados com abertura e obter respostas igualmente diretas e fundamentadas.

No domínio da política agrícola precisamos de um debate mais aberto, participado e construtivo, que valorize a diversidade de opiniões e não a concordância passiva.

Apelo à promoção de uma maior equidade territorial e social da política agrícola

O governo deve explicitar com objetividade o que entende por equidade territorial e social no domínio da política agrícola e quais os objetivos e compromissos que assume neste domínio. Sem isso navega-se sem bússola para guiar os diagnósticos das desigualdades entre territórios e entre agricultores e sem orientação para as combater e superar.

Para dar cumprimento às orientações e exigências dos regulamentos comunitários, o PEPAC não deve nem pode eximir-se a esse dever. Cabe ao Governo, e em particular ao Ministério da Agricultura, essa responsabilidade.

Apelo, finalmente, a um sistema de decisão e gestão da política agrícola mais aberto, participado e descentralizado

A agricultura é a atividade económica e social mais enraizada em todo o território nacional. Os contextos onde age e os agentes que lhe dão vida apresentam enorme diversidade de necessidades e potencialidades.

Há muitas competências e vontades de dar um maior contributo ao desenvolvimento agrícola e rural em todas as regiões de Portugal. São recursos que o governo não deve ignorar e desbaratar. É necessário mudar o atual sistema centralista, fechado e corporativo de decisão e gestão da política agrícola, que bloqueia os passos que podemos e devemos dar no sentido de um aproveitamento mais sustentável, justo e eficiente dos recursos nacionais.

Não tenho legitimidade nem força para dar cumprimento a estes desígnios. Mas senti que tinha chegado a hora de os partilhar com as instituições políticas que nos representam e, também, de forma aberta ao espaço público. E assim fiz.

Francisco Cabral Cordovil

Lisboa, 18 de fevereiro de 2021


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