Bruxelas, 22 de Fevereiro 2001
Carta aberta aos meus Colegas Deputados Socialistas do Parlamento Europeu
A Política Agrícola Comum foi essencial para consolidar o projecto comunitário, desempenhou um papel altamente positivo no pós-guerra e fez face, com êxito, a uma situação de grande carência alimentar.
Foi concebida para manter preços elevados aos agricultores, como estimuladores da produção.
Estes preços foram apoiados por subsídios e pela imposição de um elevado controle das importações, vigorando o princípio da preferência comunitária.
Com efeito, desde meados dos anos 50 até hoje, houve um fortíssimo aumento da produção, o qual foi acompanhado por uma enorme evolução do conhecimento científico e tecnológico.
Acontece que esse fortíssimo aumento de produção foi muito superior ao crescimento do consumo, invertendo completamente a situação de carência alimentar que levou à criação da PAC.
Hoje, o principal problema do sector é o excesso de produção.
A política agrícola, com quase meio-século, sempre baseada em fortes subsídios, criou uma mentalidade característica e facilitista a muitos agricultores, bem como às suas associações.
A verdade é que, em vez de analisarem e discutirem as políticas ligadas ao sector, muitos agricultores e as suas associações criaram o mau hábito de somente exigirem mais e mais subsídios.
A PAC, voltada para a quantidade produzida e subsidiando forte e prioritariamente as produções que ocupam menos mão-de-obra, deu um grande contributo para a elevada concentração das explorações agrícolas e acelerou de forma impiedosa a desertificação rural.
Os subsídios são concedidos, como se sabe, em função da dimensão da exploração agrícola e da quantidade produzida; quer isto dizer que são obtidos na sua quase totalidade pelos agricultores maiores e mais produtivistas, criando profundas injustiças, contribuindo para um risco crescente da qualidade e segurança alimentar e fomentando muitas vezes um aumento desnecessário das agressões ambientais bem como da utilização dos recursos naturais não renováveis.
Para se ter a noção com algum rigor da dimensão catastrófica da desertificação rural entretanto ocorrida e do aumento em flecha da produção registado no sector, basta referir que, nos anos 50 a agricultura europeia ocupava 45% da população, ao passo que hoje são menos de 5% os que nela trabalham e produzem oito vezes mais.
Isto é, a população agrícola diminuiu nove vezes e a produção aumentou oito.
Mas se o objectivo da PAC continuar a ser fomentar o produtivismo desenfreado num sector que utiliza a natureza como fonte de produção, com o alargamento da União às novas potências agrícolas e a garantia da evolução ainda mais rápida do conhecimento científico e tecnológico, a situação a médio prazo, tornar-se-á, explosiva.
A manutenção desse objectivo exigirá que as instituições se responsabilizem politicamente pelos excedentes crescentes na produção, pela continuação da deterioração da cadeia alimentar, pelo aumento desnecessário e irresponsável das agressões ambientais e, seguramente, por uma população não superior aos 2% ligada ao sector.
Desde que a PAC foi concebida até aos nossos dias, apesar das incríveis mudanças ocorridas, a sua filosofia política de base manteve-se, tornando-a uma peça de museu, que sobrevive graças à rotina e acima de tudo aos enormes interesses ilegítimos que criou.
Hoje dão-se subsídios para fomentar a produção mas, em simultâneo, subsidiam-se a retirada de terras, como acontece, por exemplo, nos cereais.
Impõem-se fortes regimes de quotas com o objectivo de travar o excesso da produção, como acontece, por exemplo, no leite.
Subsidiam-se em larga escala as armazenagens para aliviar o excesso de oferta, como acontece com a carne.
Pratica-se um vergonhoso dumping comercial nas exportações, com produções “dopadas” com 70% de subsídios em relação ao valor real do produto, como acontece com os cereais, aqui, com a agravante de arrasar completamente as agriculturas dos países mais pobres.
Utilizamos os nossos excedentes de produção, sem mercado, para praticar a piedosa caridade da ajuda alimentar aos países mais pobres, depois de termos arruinado as suas agriculturas com o vergonhoso dumping à exportação.
Para justificar toda esta produção “dopada” em subsídios, falamos hipocritamente nos mais de 800 milhões de cidadãos que existem no mundo com fome, mas todos sabemos que essas pessoas são vítimas, não da escassez ou da incapacidade de produzir alimentos para lhes matar a fome, mas sim da injusta repartição da riqueza que os impede de terem acesso a recursos para comprarem alimentos.
Vale a pena destacar mais algumas situações escandalosas
1. Cereais
São a produção mais desertificadora do mundo rural por ser a que menos mão-de-obra ocupa.
Os cereais representam as maiores explorações agrícolas da Europa e são uma produção largamente excedentária.
Este sector representa somente 10% do produto agrícola comunitário, no entanto recebe 47% de todos os subsídios destinados ao sector.
2. Hortofrutícolas
É uma produção que ocupa 17 vezes mais mão-de-obra por hectare do que os cereais.
A média da dimensão das explorações agrícolas hortofrutícolas é seis vezes menor do que as dos cereais.
Este sector representa 16% da produção Comunitária, isto é, mais 6% do que os cereais.
A União é deficitária neste sector, ao contrário dos cereais em que é excedentária.
Apesar destas enormes diferenças, os hortofrutícolas recebem 4% dos subsídios, isto é, 12 vezes menos do que os cereais.
Poderá pois perguntar-se : Será que alguém duvida que uma das consequências políticas para PAC é o desemprego e a desertificação do mundo rural ?
3. Cadeia alimentar
A manutenção dos subsídios à produção e à exportação são aceleradores incontestáveis do produtivismo no sector agrícola, pondo cada vez mais em risco a saúde pública, o bem-estar animal e o meio ambiente.
O caso das vacas loucas representa apenas a ponta do iceberg.
Para acelerar a produção assiste-se à utilização, clandestina, crescente, de hormonas altamente cancerígenas.
Por outro lado, assiste-se ainda à intensificação da utilização de antibióticos como única forma de garantir a sobrevivência da elevada concentração de animais na pecuária intensiva, com forte incidência na saúde pública.
São introduzidos os organismos geneticamente modificados, muitos deles, sem o prévio conhecimento do seu efeito nas pessoas.
O aproveitamento, já detectado, de lamas de esgotos e resíduos industriais para a alimentação animal provoca a disseminação de dioxinas que afectam a saúde pública.
A utilização descontrolada de pesticidas tem um forte impacto negativo na saúde.
Poderá pois perguntar-se : Será que alguém duvida que outra das consequências da PAC que subsidia a quantidade produzida é pôr em risco a saúde pública ?
4. Dualização da cadeia alimentar
O descrédito crescente da cadeia alimentar está a abrir o caminho a dois modelos de produção agrícola.
Um, para os ricos e informados, que estão a passar crescentemente para o consumo do modelo de produção biológica, e outro para os mais carenciados e desinformados, que consomem o modelo de produção fomentado pela PAC
Há ainda uns outros consumidores, desorientados, que alteram por medo os hábitos alimentares na ânsia de preservarem a sua saúde.
É inaceitável, no plano ético e político, fomentar duas cadeias alimentares, uma para ricos e informados e outra para pobres e desinformados, quando o principal objectivo da PAC deveria ser o de subsidiar a qualidade e segurança alimentar.
5. Meio ambiente e utilização dos recursos naturais
Muitas das agressões ao meio ambiente e abusos na utilização dos recursos naturais devem-se à política produtivista imposta pela PAC, a qual exige que se produza o máximo possível, ainda que, muitas das vezes, seja somente para captar subsídios.
A incentivação da utilização e da destruição de recursos naturais é um crime, pois coloca em risco a sobrevivência das gerações futuras.
Ao contrário do que faz a PAC, a agricultura deveria reger-se por uma política de utilização dos recursos naturais, baseada em fortes critérios éticos que combatessem o egoísmo produtivista reinante.
A PAC sempre procurou confundir a actividade agrícola com a actividade industrial, cujo lema é produzir o máximo com o mínimo de custo.
Há, no entanto, uma diferença fundamental entre as duas actividades – a agricultura produz à custa da utilização da natureza, que é um património colectivo, do qual depende a sobrevivência de todos os cidadãos do mundo.
6. Injustiças da PAC
Os contribuintes dos quinze da União pagam cerca de 300 euros por ano no pressuposto de que essa contribuição fosse para subsidiar 5% da população ligada à agricultura, mas na realidade o que acontece é que só uma percentagem ínfima de grandes agricultores, os ligados às produções subsidiadas, é que ficam com a quase totalidade das contribuições.
Há um estudo oficial do começo dos anos 90 que referia que 20% dos agricultores arrecadavam 80% dos subsídios. Hoje, infelizmente, a situação ainda é muito mais injusta, dada a grande concentração de subsídios, a qual, desde 1993, isto é após a incrível reforma da PAC, se faz na produção de cereais, que passaram de 31% do volume de subsídios absorvidos do Feoga-Garantia para 47%.
Era importante exigir à Comissão a actualização do estudo do começo dos anos 90, que a fará chegar à conclusão de que cerca de 10% de agricultores privilegiados recebem aproximadamente 80% dos subsídios do Feoga-Garantia.
Esta profunda injustiça indigna-me e eis a razão por que, desde que sou Deputado Europeu, há seis anos, me recuso a votar o orçamento e todos os anos sou obrigado a ir ao Grupo Socialista e à Comissão da Agricultura protestar contra ela.
As modulações de 20% nos subsídios, permitidas mas não obrigatórias na Agenda 2000 e sem a imposição de qualquer tecto máximo, tornam-se irrelevantes na redistribuição e na prática não amenizam a injustiça.
Mas o chocante, o que indigna é o comportamento do Conselho Agrícola e a visão tacanha e lobysta que tem do sector.
Apesar de irrelevantes, as modulações eram um sinal, mas só a França e Portugal as vão pôr em prática.
Há nesta matéria de encobrimento das injustiças e de irresponsabilidade política uma enorme opacidade institucional.
Há muito que peço à Comissão, sem o conseguir, a informação do valor dos subsídios dos 100 maiores beneficiários de cada Estado-Membro. Tal informação, que há muito pretendo e a que como Deputado tenho direito, é-me sonegada, porque ela seria fatal para o desmascaramento das profundas injustiças da PAC.
Contudo, posso afirmar, sem poder ser desmentido, que a União oferece quase metade do seu orçamento a menos de 1% dos cidadãos mais ricos.
Não conheço mais nenhuma instituição democrática no mundo que trate tão bem os ricos e os poderosos como a União.
7. Evolução das despesas do Feoga-Garantia
O suporte financeiro de toda a distribuição de subsídios para a agricultura é o Feoga-Garantia, o qual absorve cerca de 48% de todo o orçamento comunitário.
Ora, os aumentos de dotação que desde 1993, após a incrível e vergonhosa reforma de 1992, têm ocorrido destinam-se exclusivamente a subsidiar os cereais.
Em 1993, o Feoga-Garantia era dotado com 34.591 milhões de euros, recebendo os cereais 10.609 milhões de euros de subsídios.
No ano 2000, a dotação financeira atingia 41.493 milhões de euros e para os cereais foram canalizados 16.641 milhões de euros de subsídios.
Isto é, o aumento nos sete anos do Feoga-Garantia foi de 6.902 milhões de euros e o aumento de subsídios para os cereais foi de 6.032 milhões de euros.
É outro escândalo inaceitável, a União demitiu-se da sua função institucional de dirigir uma política comum da sua responsabilidade para se transformar num mecenas intolerável dos cereais, que, ainda por cima, são uma produção excedentária, desertificadora, representam somente 10% da produção agrícola comunitária e cujas explorações pertencem aos maiores senhores da terra.
Exigir uma nova PAC com novos objectivos
O alargamento da União, a rebelião dos consumidores e ambientalistas e as negociações no quadro da Organização Mundial do Comércio são ingredientes mais do que suficientes para obrigar a uma reflexão e criar a esperança de uma nova PAC.
A actividade agrícola não diz hoje respeito somente aos agricultores, ela tem também muito a ver com a defesa da saúde pública, com a preservação dos recursos naturais e com o ordenamento do espaço rural.
A evolução sustentada do sector exige um pacto de confiança entre agricultores, consumidores e ambientalistas.
Esse pacto passa por profundas mudanças nas Instituições Comunitárias, de modo a retirar poderes aos lobbies de interesses instalados no Conselho, na Comissão e no Parlamento, possibilitando assim a discussão orientada para novas políticas e não para a defesa de interesses instalados, muitos deles ilegítimos.
Os subsídios devem ser utilizados como incentivos políticos aos objectivos prioritários e ao fomento da tal agricultura multifuncional de que tanto falam, mas que a PAC combate.
Em minha opinião, esses objectivos que defendo desde que cheguei ao Parlamento Europeu são : fomentar a qualidade e segurança alimentar, preservar os recursos naturais, travar a desertificação rural, diversificar a cadeia alimentar e promover o auto-abastecimento alimentar da Comunidade.
A qualidade, a segurança alimentar e a preservação dos recursos naturais estão muito ligadas às práticas agrícolas utilizadas na produção.
Há práticas agrícolas altamente recomendáveis e outras severamente condenáveis.
Por exemplo, a intensificação ou a extensificação da produção são práticas opostas, tanto na pecuária como na produção vegetal.
Outro exemplo é a utilização maciça de fertilizantes, pesticidas, herbicidas, antibióticos, etc., os quais provocam aumentos de produção que não compensam os prejuízos colectivos de que todos somos vítimas.
A nova PAC deveria somente subsidiar a aplicação na produção de um código de boas práticas agrícolas nascido da negociação do tal pacto de confiança entre consumidores, agricultores e ambientalistas.
Deveria ainda defender intransigentemente a empresa agrícola familiar com um prémio de manutenção.
A empresa agrícola familiar está nas tradições históricas de toda a Europa e é a raiz gastronómica e cultural de muitos povos da União.
A nova PAC deveria conferir-lhe um estatuto de benefícios muito especial.
É fundamental também integrar e incentivar a diversificação da cadeia alimentar, declarando guerra à sua massificação.
A diversificação tem a ver com a cultura, com a biodiversidade, com os hábitos gastronómicos ancestrais e com a defesa de riquezas alimentares de valor incalculável, específicas de muitas regiões da União.
A nova PAC deve voltar-se para o auto-abastecimento, procurando manter sempre a independência alimentar da União, acabando com todos os subsídios à exportação.
Organização Mundial do Comércio
A implementação de uma nova PAC baseada na defesa da qualidade e segurança alimentar, na preservação de recursos naturais, no combate à desertificação rural, na diversificação e independência alimentar da União exige novas posturas na discussão no seio da O.M.C.
As exportações alimentares da União são insignificantes em relação ao valor global da produção, pelo que a preocupação não é abrir mercados, mas sim, preservar o modelo europeu.
Mais liberalização no sector agrícola corresponde sempre a mais produtivismo.
Mais produtivismo é sinónimo de pior qualidade e segurança alimentar, mais agressões ambientais, mais desertificação rural e mais massificação da cadeia alimentar, isto é, o contrário do que se pretende para a evolução sustentada e multifuncional para o sector.
O modelo defendido para a nova PAC não visa a produção nem a competição externa.
A base da negociação deve ser o que exigimos aos nossos agricultores, é o que devemos exigir aos nossos parceiros comerciais.
Feoga-Orientação
A mudança para uma nova PAC obriga a que o fundo de suporte ao investimento no sector seja reorientado para os novos objectivos.
O melhoramento da qualidade e segurança alimentar, o fomento das produções regionais e a sua industrialização familiar, a defesa da pequena indústria que contribua para a diversificação, etc., etc. devem ser assumidos como grandes objectivos.
Nota Final
Após decisão da formação de um grupo de trabalho alargado no seio do Grupo Socialista do Parlamento Europeu para reflectir sobre a reforma da PAC, que eu efusivamente saudei, porque há muito o reclamava, e sendo eu conhecido pela militância activa contra esta política que me indigna, senti-me na obrigação de contribuir por escrito com algumas das minhas reflexões.
Para os meus Colegas Deputados Europeus, da Comissão de Agricultura é a repetição de um discurso ouvido durante seis anos, para os outros, é uma carta aberta com uma modesta contribuição que, espero, os ajude a reflectir e a indignarem-se.
António Campos
P.S.: Cópia aos Comissários, F.Fischler, P.Lamy e D.Byrne.