Henrique Pereira dos Santos

Cheias rápidas e incêndios – Henrique Pereira dos Santos

Há um conjunto de amigos meus ambientalistas que se horrorizam com a minha tranquilidade em relação às alterações climáticas e seus efeitos, achando abstrusa a minha confiança na tecnologia, na sociedade e no livre arbítrio das pessoas para lidar com os problemas que decorrem da evolução do mundo (o que inclui alterações climáticas, consumo de energias de origem fóssil, degradação do solo, aceleração dos ciclos de produção e consumo, etc.).

Eles não sabem, nem sonham, que não tenho confiança nenhuma na tecnologia ou no desenvolvimento programado de tecnologias para resolver problemas complexos, porque sei que as tecnologias servem sociedades cujos valores se vão adaptando às circunstâncias, isto é, que aplico às sociedades e à sua evolução os princípios da evolução darwinista: cada conjunto de problemas num determinado contexto vai dar origem a um conjunto de respostas por parte dos que são afectados por eles. As soluções que provarem ser úteis irão prevalecer, as soluções que se revelarem inúteis tenderão a desaparecer (não porque uma inteligência superior consegue distinguir as soluções boas das más, mas porque os que adoptam soluções que funcionam tenderão a prevalecer sobre os que fizerem opções menos adaptadas às suas circunstâncias).

E também sei que nada disto acontece sem choro e ranger de dentes, portanto não tenho vontade nenhuma de perder tempo atrás de soluções que visem instituir o paraíso na terra, apenas me interessa reduzir os meus preconceitos (os preconceitos são um mecanismo muito útil para evitar perder tempo e energia a procurar sempre a melhor solução para cada circunstância, usando a informação prévia a que temos acesso durante a nossa vida) para estar o mais aberto possível a reconhecer as virtudes das soluções que me parecem absurdas ou simplesmente tontas (de preferência, deixando aos outros o risco de as experimentar).

Resumindo, sou um verdadeiro reaccionário.

Vem esta razoavelmente pretensiosa introdução a propósito das cheias rápidas, originadas por precipitações elevadas, num curto espaço de tempo, em bacias hidrográficas de carácter torrencial, que não devem ser confundidas com as cheias lentas das grandes bacias hidrográficas.

Concretizando, as cheias periódicas da Ribeira, no Porto, resultam do rio Douro galgar as suas margens quando precipitações prolongadas aumentam o seu caudal, e por isso foram minimizadas e reduzida a sua frequência com a construção de barragens a montante que encaixam volumes de água apreciáveis, as inundações periódicas de Lisboa não resultam das cheias do Tejo, porque a lezíria desempenha esse papel de encaixe de volumes de água excepcionais, mas de escoamento rápido em pequenas bacias hidrográficas.

Daí as cheias da Ribeira, no Porto, poderem ser previstas com alguma antecedência, mas quando ocorrem demorarem tempo a resolver-se, daí o facto das inundações de Lisboa serem dificilmente previsíveis e durarem apenas curtos períodos de tempo, tipicamente poucas horas, até a água recuar.

O mais curioso é que uma boa parte dos meus amigos que criticam a minha excessiva confiança na tecnologia e no génio humano terem muita fé na solução dos túneis subterrâneos para resolver as inundações de Lisboa, provavelmente esquecendo-se que é uma solução hidráulica desenhada para determinadas circunstâncias, que, se funcionar como previsto, potenciam os danos futuros de uma inundação que resulte de serem diferentes as circunstâncias.

O que está em causa na solução dos túneis é criar capacidade de escoamento para o volume de água resultante da precipitação que, estatisticamente, ocorre a cada cem anos.

Partindo do princípio de que tudo vai correr como o previsto, que os sistemas estão perfeitamente mantidos durante anos para estarem 100% operacionais a cada cem anos, etc., o resultado social desta opção é o de que a generalidade das inundações mais destrutivas nas zonas inundáveis de Lisboa passam a ser muito mais seguras.

O que é de esperar é que essa segurança faça baixar a guarda social em relação ao risco de inundação dessas áreas, acabando por ter um efeito de incentivo à ocupação inadequada dessas áreas.

Ao mesmo tempo, essa guarda também irá baixar em relação aos custos de manutenção de todo o sistema de drenagem associado aos túneis, sendo previsível que, a prazo, à medida que a memória das cheias desaparece, a vontade social de gastar dinheiro na manutenção do sistema acabe por ir diminuindo.

Acresce que o facto do sistema estar dimensionado para a cheia dos cem anos não impede a existência, amanhã, de um fenómeno com um retorno de mil anos, circunstância em que o sistema colapsa, porque não está desenhado para essas circunstâncias (nem faria sentido desenhá-lo para essas circunstâncias pelos custos envolvidos, com baixíssimo retorno social).

Isto é, a solução dos túneis corresponde à solução de supressão do fogo para gerir os fogos florestais.

Embora com risco diferente do da solução da supressão do fogo, a verdade é que o potencial destrutivo associado à primeira inundação em que o sistema não funcione como previsto (porque o evento meteorológico está para lá do previsto, ou porque houve problemas de manutenção, ou seja pelo que for), aproxima-se do potencial destrutivo do fogo que foge ao controlo quando temos uma política de supressão do fogo: as razões base para os prejuízos causados por estes elementos naturais são potenciadas pela sensação de segurança que foi conferida pela solução tecnológica que funcionou durante algum tempo.

Neste caso, a sensação de segurança na ocupação de zonas inundáveis por usos incompatíveis com a inundação periódica induz um aumento de risco nessa ocupação.

Quer isto dizer que discordo desta solução?

De maneira nenhuma, isso é uma mera questão de avaliação custo/ benefício que nem sei fazer e nem procurei estudar, e há exemplos no mundo de como soluções deste tipo funcionam bem há séculos, como é o caso do sistema de diques dos Países Baixos.

Faço notar, no entanto, que o sistema de diques dos Países Baixos resulta de um processo histórico com séculos de evolução, cujo aperfeiçoamento foi feito à custa de tragédias imensas com milhares de mortos, o que mantém bem vivo o sentimento social de risco associado às falhas do sistema.

Ao contrário do que pensam os meus amigos ambientalistas, eu não tenho nenhuma fé metafísica na tecnologia, o que acho é que perante o risco as pessoas reagem e defendem-se, quer individualmente, quer socialmente, e isso dá origem a muitas respostas, algumas das quais funcionam e se tornam dominantes quando o seu retorno social, para o custo que acarretam, compensa.

No caso das cheias rápidas, a convicção generalizada de que alterando usos do territíorio a montante (o que é diferente da criação de zonas que sirvam de encaixe parcial aos volumes de água que possam ocorrer, o que não resulta da infiltração no solo, mas da capacidade de retenção à superfície, através de alagamento) e criando soluções hidráulicas de escoamento, resolvemos o problema do risco associado à ocupação de de zonas naturalmente inundáveis, é um risco social muito relevante, porque nos conduz a uma percepção de risco errada: as zonas inundáveis serão sempre inundáveis e seria muito razoável que nos concentrássemos na discussão do que são os usos compatíveis com umas horas de inundação de tempos a tempos.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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