As alterações climáticas estão a mudar a vida e os hábitos de plantas e animais em Portugal, surgem novas espécies de peixes nas águas nacionais, as aves mudam comportamentos e “há um movimento para norte”.
A propósito do último relatório divulgado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla original), divulgado recentemente e que alerta para as mudanças irreversíveis no planeta causadas pela humanidade, a agência Lusa falou com seis especialistas, todos eles garantindo que as alterações climáticas existem e já estão a causar mudanças em Portugal.
“Há um movimento para norte”, diz Rui Pimenta Santos, professor da Universidade do Algarve, especialista em ecologia marinha e em plantas marinhas, referindo-se a algas e a peixes.
“O aquecimento do oceano é uma evidência e as espécies reagem a isso. Na costa algarvia há agora peixes que só existiam na Madeira e Açores e as espécies de águas mais frias estão a ir para norte”, diz à Lusa, explicando que o mesmo se passa com as laminarias, grandes algas castanhas que apenas existiam no norte do país e que se estão a deslocar ainda mais para norte.
Em contrapartida há, garante, outras espécies de algas, provenientes de águas mais quentes, que têm vindo a entrar em Portugal. É certo, diz, que os limites térmicos das espécies são amplos, mas avisa que nas zonas de fronteira da temperatura “qualquer aquecimento faz a diferença”.
Mas não é apenas no mar que os cientistas encontram mudanças. André Carapeto coordenou a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, apresentada em 2020, e é especialista em plantas em vias de extinção, nas quais se nota “mais claramente os efeitos das alterações climáticas, principalmente naquelas com habitats muito específicos”.
É o caso das plantas que vivem acima dos 1.500 metros de altitude. O aumento das temperaturas na Serra da Estrela, com menos neve, afeta 30 espécies de plantas que “não têm para onde ir” e que veem os seus habitats ocupados por outras plantas que começam a “subir” a serra, como as giestas e os sargaços, diz à Lusa.
E à Lusa também Domingos Leitão, diretor-executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), fala de 30 anos de mudanças no comportamento das aves, influenciados pelas alterações climáticas, mas também por outros fatores de origem humana, como a agricultura intensiva, ou a captura acidental de aves marinhas em redes de pesca.
O aquecimento global é um dos fatores, diz, que levou a que algumas aves migradoras se tenham tornado mais sedentárias, como a cegonha-branca, como a poupa, com grande parte da população a passar o inverno em Portugal. “Migravam porque não tinham condições para passar o inverno, mas agora têm”, diz, dando também o exemplo do britango, uma espécie de abutre.
Não é necessariamente mau, salienta o responsável, que questiona, no entanto, para onde irão as aves que precisam de zonas mais frias. Joaquim Teodósio, também da SPEA, que defende que devido às alterações climáticas Portugal devia já começar a alterar as atuais áreas protegidas, diz que o aquecimento poderá estar a mudar comportamentos de aves como os pilritos ou as limosas (aves aquáticas), e que é natural que surjam em Portugal espécies típicas do norte de África.
A SPEA diz que espécies que se reproduzem no norte da Europa, onde a primavera está a chegar mais cedo, antecipam o calendário migratório, como o papa-moscas, que abandona o inverno do sul mais cedo. Mas o aquecimento também antecipa a reprodução dos insetos de que se alimenta e quando chega às zonas de nidificação pode já não haver alimento para as crias. “Tal como o papa-moscas, várias outras aves migratórias veem a sua reprodução comprometida por este desfasamento entre os ritmos de resposta de aves, insetos e plantas às alterações climáticas”, diz a SPEA.
José Alves, biólogo e investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar, da Universidade de Aveiro, especialista em aves migradoras, não tem também dúvidas: “As alterações climáticas estão muito ligadas às aves migradoras e é muito notória a alteração de comportamentos”.
O Ártico, com um grande aumento das temperaturas, leva a uma alteração da resposta das aves à primavera, chegando mais cedo aos estuários portugueses. Mas José Alves nota que são as novas gerações as que chegam mais cedo, pelo que a resposta às alterações climáticas acontece no tempo de uma geração. Mas avisa: “Algumas espécies poderão não ter tempo para se adaptar”.
E se há aves como a cegonha-branca que já não saem de Portugal, na Islândia há aves que passavam o inverno em Portugal e agora já não migram também e ficam sempre na Islândia. José Alves adverte que podem morrer se o inverno for muito rigoroso neste país.
“O ostraceiro era tradicionalmente migradora e começa a passar o inverno mais a norte, as aves de montanha sobem para zonas mais altas”, diz à Lusa o especialista, explicando que se trata de fenómenos complexos onde entra também a disponibilidade de alimentos e o tempo de nidificação.
Hoje “o pico de alimento pode não coincidir com o nascimento das crias”, salienta também.
José Alves diz haver um declínio nas aves limícolas (associadas a zonas húmidas). Mas diz também não se poder concluir que o aquecimento global está a colocar espécies de aves em risco de extinção.
André Carapeto é mais perentório quanto a plantas: “As alterações climáticas vão acelerar o processo de desaparecimento de plantas que já estava em curso”.
As plantas das dunas são um exemplo de espécies ameaçadas, com a previsível subida do nível médio da água do mar, e “no litoral norte já há espécies ameaçadas de extinção, bem como no Algarve”.
Secas frequentes vão favorecer incêndios e ameaçar também as espécies dos bosques, beneficiando espécies invasoras como acácias e mimosas, diz também o especialista, acrescentando que as plantas associadas a zonas húmidas estão também em perigo.
“A flora das turfeiras é das mais ameaçadas, os brejos estão a desaparecer, há um declínio das plantas aquáticas muito acentuado”, resume André Carapeto, afiançando que nos próximos 100 anos se assistirá a uma extinção acelerada de plantas, até porque é tal a rapidez das alterações climáticas que muitas espécies possivelmente não se vão conseguir adaptar. E ganham as invasoras, como as azedas, até agora condicionadas a norte pelo frio e geadas, mas que “irão subir cada vez mais”.
Se em terra é este o panorama no mar pode ser melhor. Rui Orlando Pimenta Santos diz que em Portugal o aumento da temperatura não está a afetar negativamente as ervas marinhas. Mas há por exemplo uma espécie, do Mediterrâneo, que já vai até à zona do Sado “e possivelmente dentro de alguns anos chegará a Aveiro”.
“O importante não é tanto o aumento da temperatura, mas a frequência de evento extremos, as ondas de calor”, salienta. E explica ainda que se perderam nas últimas décadas, por ação do Homem, um terço das ervas marinhas, e que nos últimos 10 anos houve uma recuperação, por melhor preservação dos ecossistemas e especialmente pela melhoria da qualidade da água.
Há mudanças nas pradarias marinhas, nos sapais e nos mangais, em declínio. Mas há mudanças que “não são necessariamente más”, afiança o especialista. E exemplifica. Se o robalo pode estar a diminuir os lírios estão a aumentar.
Francisco Leitão, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve trabalha há 15 anos na área das alterações climáticas e da pesca, procurando compreender como é que as alterações climáticas afetam os recursos marinhos, mas também as comunidades piscatórias e a sociedade em geral.
“Hoje há dados inequívocos que indicam que há uma tendência, não só a nível nacional, mas global, onde se nota que determinadas variáveis estão a mudar. Nota-se que a temperatura da água está a mudar, que o ph (que aumenta a acidificação da água) também”, diz à Lusa, acrescentando que tal está cientificamente provado.
Se a culpa é das alterações climáticas não é aqui importante, a “grande questão” é saber as consequências.
A equipa na qual se insere Francisco Leitão tem vindo a estudar (projeto “Clima-Pesca”) o ciclo de vida dos peixes, tem feito projeções e estudado as consequências e as adaptações. Estuda, resume, a exposição, a sensibilidade e adaptação das espécies às alterações.
E o que comprovou é que as principais espécies de peixe que existem na costa portuguesa de interesse comercial, como a sardinha, o carapau, o peixe-espada, o choco ou o polvo, a dourada ou o robalo, são pouco vulneráveis às alterações climáticas.
Ou seja, diz, os dados indicam que até 2050 deverá haver um equilíbrio nessas espécies. Mas também alerta que tudo pode mudar num próximo estudo.
Francisco Leitão, biólogo marinho e pesqueiro, explica que as espécies em questão são de regime temperado, de grande distribuição geográfica, e bem adaptadas. A sardinha, por exemplo. Há larvas de sardinha e sardinhas no Algarve, mas também no norte, com água a menos quatro ou cinco graus.
Alerta o especialista: “O que o nosso estudo demonstrou foi que até 2040/2050, e assumindo as condições do ano passado, a natureza está a dar uma oportunidade de até lá fazermos as coisas bem”.
Por isso, salienta, é preciso gerir melhor os recursos, respeitar os tamanhos mínimos, a sazonalidade. Francisco Leitão admite que os pescadores não estão sensibilizados para a questão, diz que se vai tentar dar formação, tentar fazer um livro de bolso, séries documentais.
E sim, diz, há espécies de peixes que se deslocam para norte (tropicalização) devido ao aumento das temperaturas, um fator que até podia ser positivo porque há um crescimento mais rápido, não fosse porque assim os peixes passam menos tempo numa região e são menos dispersos pelas correntes (quando ainda não nadam).
E também se fala da meridionalização, as espécies do norte que se deslocam para zonas mais centrais, embora o estudo tenha indicado que uma alteração nesse sentido será ténue.
Em resumo, afirma, a região onde Portugal se insere não deverá sofrer grandes mudanças. Mudanças, avisa, deviam era ser na forma como o planeta lida com o aquecimento global. Ou não lida.
Mas não nega que haja agora mais lírios nas águas do Algarve, que também aparece o pargo senegalês. Especialmente no Algarve “podemos começar a ver espécies a que não estávamos habituados”.
Não é necessariamente mau: “Temos que pensar em como tirar benefícios destas espécies que aparecem”.
Rui Pimentas Santos também já o defendera: comam-se os lírios.