Manuel Chaveiro Soares

Conheci muitos vegans no pós-guerra – Manuel Chaveiro Soares

Recentemente descrevi as práticas adoptadas nas duas últimas décadas na Herdade da Daroeira no que concerne à economia circular (e à pegada de carbono), mas hoje gostaria de recordar que a economia circular é desde longa data praticada pelos agricultores portugueses, sem que, todavia, tal prática fosse sujeita à pesada burocracia que hoje é imposta pela Comissão Europeia.

Ilustro seguidamente o que precede com vários exemplos que presenciei no início da década de 1950 na própria empresa agro-industrial da minha família paterna, situada na região Oeste.

Primeiro exemplo: do bagaço da uva extraía-se: i) o folhelho, que era destinado ao fabrico de alimentos compostos para ruminantes; ii) a grainha, donde se extraía o respectivo óleo; iii) o engaço, utilizado como combustível.

Segundo exemplo: as borras de vinho eram centrifugadas a fim de separar o líquido, que era destilado, em processo contínuo patentemente pelo meu Pai, para dar origem a aguardente vínica (usada em famosos brandies nacionais), sendo a parte sólida exportada como matéria-prima utilizada no fabrico de ácido tartárico.

Terceiro exemplo: da moagem de trigo aproveitava-se: i) a água, usada na limpeza dos cereais, para regar o pomar; ii) a alimpadura era administrada às aves de capoeira e iii)  as sêmeas destinavam-se à alimentação de suínos.

Quarto exemplo: o bagaço de azeitona era vendido para extração com solventes do óleo remanescente, que por sua vez era refinado, podendo ser misturado com azeite virgem, originando o óleo de bagaço de azeitona refinado; o bagaço extractado era utilizado como combustível.

Quinto exemplo: os fardos de palha de trigo provenientes da debulha eram destinados aos bois de trabalho, sendo depois os estrumes aplicados como corretivos orgânicos, bem como as águas residuais domésticas, que desde já há alguns anos voltaram também a ser utilizadas em Israel.

Sexto exemplo: eventuais sobras de comida eram destinadas aos animais domésticos, tanto mais que ainda não se dispunha de energia elétrica nem de frigorífico (não havia pois qualquer desperdício alimentar que, actualmente, segundo a FAO representa cerca de um terço de todos os alimentos produzidos anualmente a nível mundial).

Presentemente a economia circular está na ordem do dia e o que muitos ainda classificam como resíduo parece-me mais correcto considerar como sub-produto ou mesmo matéria-prima, conforme ilustrei com os exemplos que apresentei anteriormente.

O caso dos correctivos orgânicos constitui um tema que venho debatendo há vários anos, nomeadamente porque defendem o ambiente e revestem-se de grande interesse para a fertilidade dos solos   ̶   em especial no caso português, onde a generalidade dos solos é pobre em matéria orgânica e esta por sua vez é rapidamente mineralizada em consequência das características do clima mediterrânico.

Não obstante as excelentes propriedades fertilizantes dos efluentes pecuários (estrumes e chorumes) e do interesse que têm para a defesa do ambiente (retenção de água e de nutrientes, reservatório de carbono), entre nós a sua valorização agrícola está sujeita a condicionalismos muito limitativos e não raro aguardam-se vários anos para que um Plano de Gestão de Efluentes seja aprovado pela entidade oficial competente. Ao invés e com excepção das Zonas Vulneráveis a Nitratos   ̶   que correspondem a uma área relativamente pequena   ̶   os adubos minerais podem ser utilizados sem restrições.

Curiosamente, os aludidos adubos, nomeadamente os ternários, têm na sua composição azoto (cuja síntese do amoníaco é extremamente exigente em energia), fósforo e potássio (ambos extraídos de fontes não renováveis), cumprindo acrescentar que os adubos minerais são todos importados.

Ou seja, na minha opinião e no que toca aos fertilizantes, na UE a economia circular não é encarada da melhor forma pela Comissão Europeia, nomeadamente no caso português.

Não ponho em dúvida que a referida organização, constituída por burocratas de carreira, tem tomado decisões importantes para a UE. Mas gostaria de trazer à colação a conveniência em ouvirem profissionais; com efeito recordo uma situação em que tive oportunidade de apreciar a legislação então em preparação sobre a rotulagem de alimentos para animais com dois Comissários , sendo certo que não tive sucesso com o primeiro (David Byrne), mas o segundo   (Markos Kyprianou), em visita à Quinta da Freiria e sem assessores burocratas por perto, compreendeu o ponto de vista da indústria e a legislação em causa passou a responder aos interesses de todos os intervenientes na matéria.

A segunda questão que gostaria de aflorar prende-se com os progressos registados após a Segunda Grande Guerra, designadamente no que respeita à produção de alimentos (e, simultaneamente também noutras áreas, como a farmacologia e a salubridade), os quais contribuíram de forma extraordinária para a melhoria da saúde e para a longevidade de milhões de pessoas.

No que respeita à Produção Vegetal destaco em primeiro lugar a síntese do amoníaco   ̶   utilizado no fabrico dos adubos azotados   ̶   que se estima que tenha salvado da fome cerca de três mil milhões de pessoas.

Nesta área da produção alimentar importa destacar também os avanços científicos e tecnológicos que se verificaram no melhoramento das plantas, na sanidade vegetal, no regadio e na mecanização agrícola.

No que concerne à Produção Animal também nos últimos 70 anos a ciência e a tecnologia proporcionaram progressos extraordinários, nomeadamente no que respeita ao melhoramento genético dos animais, à nutrição e alimentação, à profilaxia e ao bem-estar, contribuindo assim para uma melhoria notável da eficiência alimentar e, consequentemente, para um decréscimo acentuado dos custos de produção.

A este propósito, se recuássemos ao início da década de 1950, verificaríamos que nessa época parte significativa da população da minha aldeia (e de muitas outras povoações no Mundo) era vegan, salvo algum dia de festa, em que, excepcionalmente, muitos tinham acesso a alimentos de origem animal; infelizmente também no próprio calçado havia uma grande proporção de vegans, com a agravante de ainda não existirem sapatos confecionados com materiais sintécticos.  Mas, felizmente, há várias décadas que essas dificuldades foram ultrapassadas, nomeadamente em Portugal, onde actualmente cada um come o que lhe apetece, tanto de origem animal como vegetal e usa bom calçado, sem restrições económicas ou de outra ordem.

Em decorrência dos progressos científicos e tecnológicos anteriormente aflorados, a fome e a doença foram erradicadas em amplas regiões do mundo, tendo a população mundial triplicado nos últimos 70 anos: de 2,5 para 7,5 mil milhões de pessoas!

Mas ainda há um amplo caminho a percorrer para alimentar e cuidar da saúde de toda a população mundial, para além de se assegurar a sustentabilidade ambiental, com relevo para os promissores estudos de âmbito internacional que estão em curso no domínio da produção de energia limpa.

Seja-me permitido acrescentar uma nota curiosa: na UE há quem desenvolva esforços para alimentar a população europeia com gafanhotos e outros insectos e, concomitantemente, a FAO estimou recentemente que a produção mundial de carne duplique até 2050, para satisfazer as necessidades nutritivas das populações de países em desenvolvimento, onde dois mil milhões de pessoas consomem insectos desde épocas remotas.

Acresce também como curiosidade que, recentemente, entre nós, emergiu um movimento contra a criação de bovinos em Portugal (cabe notar que actualmente importamos metade da carne de vaca que consumimos e, caso se diminuísse a produção nacional, passaríamos a importar ainda mais carne a partir de outros países que assim iriam expandir a referida produção animal). Ao mesmo tempo, aqueles que contrariam a produção bovina entre nós aprovam a ampliação do aeroporto de Lisboa, de que decorrerão consequências ambientais gravosas, incluindo a importação de mais bifes de vaca a partir  do longínquo continente americano para assim alimentar o número crescente de turistas que nos visitam – tudo concorrendo para uma maior pegada ecológica.

Introdução à comunicação apresentada no Seminário promovido, em 8/11/2019, pela Escola Superior Agrária de Coimbra, tendo por tema “O regadio e a sustentabilidade agroambiental: Economia circular”.

Manuel Chaveiro Soares

Eng. Agrónomo, Ph.D.


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