Corrupção nos fundos europeus?

O que deve justificar a nossa atenção é perceber se o sistema de gestão e controlo dos fundos europeus, tal como está, permite ou facilita a ocorrência de práticas de corrupção.

Recentemente surgiram várias notícias sobre a prática de crimes de corrupção ocorridos na gestão dos fundos europeus estruturais e de investimento, coincidindo no tempo com notícias sobre fraudes na sua utilização aparentemente não detetadas pelas autoridades nacionais responsáveis pela gestão desses fundos, sobre queixas de candidatos a que não terá sido dada a atenção devida e ainda sobre a ocorrência de atitudes e decisões discricionárias e abusivas por parte de alguns funcionários.

Estas notícias são suficientemente importantes para nos colocar a dúvida: Que ocorre na gestão dos fundos europeus para termos chegado a essa situação? Estamos perante mais um caso de falhanço do Estado?

A importância para o nosso país da política regional e de coesão da UE e dos fundos europeus justificam que se dê a essas notícias a melhor atenção e se procure compreender as circunstâncias e os factos que lhes estão associados.

Conheci por dentro a “máquina” da gestão dos fundos europeus e a qualidade dos recursos humanos que asseguram a sua aplicação, tendo aí encontrado dos melhores quadros de que a Administração Pública dispõe, com elevado profissionalismo e relevante motivação. É certo que o profissionalismo, a qualidade geral de uma equipa e a sua motivação não evitam a ocorrência de atitudes individuais negativas e mesmo criminais. Isso pode ocorrer em qualquer área ou função do Estado.

Não pretendemos especular sobre a efetiva ocorrência de um caso de corrupção, crime que as autoridades policiais orientadas para os crimes económicos saberão investigar, apurar e acusar.

O que deve justificar a nossa atenção é perceber se o sistema de gestão e controlo dos fundos europeus, tal como está, permite ou facilita a ocorrência dessas práticas, não apenas de corrupção mas também sobre a forma de relacionamento com os candidatos e os promotores dos investimentos, sobre o quê e o como lhes é exigido e sobre a atenção que é conferida às queixas, mesmo que anónimas ou que, numa aparência inicial, sejam motivadas apenas por ressentimentos resultantes de decisões não favoráveis às suas expectativas.

Ou seja, o que convidamos a refletir é sobre a efetiva existência de práticas de check and balance que assegurem adequados níveis de segurança e o escrutínio público sobre a boa utilização de mais de 25 mil milhões de euros. Por outras palavras, se temos de facto um sistema de gestão e controlo dos fundos europeus que assegure adequados níveis de segurança, seja eficaz e eficiente, em suma, mereça a confiança dos portugueses.

No decurso dos vários ciclos de programação dos fundos europeus (QCAI, QCAII, QCAIII, QREN e agora o PT 2020), Portugal foi aperfeiçoando o sistema de gestão e controlo de forma continuada e segundo uma linha de orientação que não flutuou com os ciclos políticos e que assentou em 4 eixos principais:

  • Uma estrutura de programas assente em programas temáticos de âmbito mais ou menos nacional, com tendência a diminuir de expressão financeira em favor de programas regionais com crescente dimensão financeira e um âmbito de incidência gradualmente alargado e que representam uma das melhores experiências de descentralização;
  • Uma gestão dos programas assente na figura das designadas autoridades de gestão, estruturas profissionais, autónomas, que tendiam a distanciar-se dos ministérios setoriais e dos grandes utilizadores públicos dos fundos europeus como forma de evitar a sua apropriação por eles e o consequente prejuízo do princípio do acesso concorrencial e da natureza estrutural e inovadora dos fundos;
  • Uma estrutura autónoma com funções de coordenação técnica e responsável pela certificação da regularidade da despesa apresentada a cofinanciamento europeu, baseada num segundo nível de controlo autónomo que confere confiança acrescida às decisões das autoridades de gestão;
  • Uma autoridade de auditoria única para o conjunto dos fundos, distante da gestão e com a responsabilidade de avaliar a segurança do sistema de gestão e controlo e de auditar a utilização dos fundos.

Este sistema de gestão e controlo, que foi sendo aperfeiçoado de forma continuada, deu resultados importantes para Portugal:

  • No decurso do QREN, Portugal foi o Estado-Membro que apresentou regular e sistematicamente os melhores níveis de execução dos fundos, mesmo no decurso do programa de assistência financeira e da presença da troika;
  • Portugal foi também o Estado membro que apresentou os mais baixos níveis de irregularidades na utilização dos fundos da coesão em toda a UE;
  • Portugal foi ainda o único Estado membro que, no decurso de todo o QREN, não foi objeto de qualquer decisão de correção financeira ou de suspensão da transferência de fundos.

O reconhecimento europeu da credibilidade, consistência e segurança do sistema de gestão e controlo dos fundos permitiu que a Comissão Europeia depositasse expressa confiança nas autoridades nacionais, abstendo-se de realizar controlos diretos em Portugal, uma vez que confiava nos resultados e nas informações que as autoridades nacionais lhe transmitiam.

No início das negociações sobre o atual PT2020, a Comissão Europeia reconheceu expressamente que “…Portugal detém um sistema de gestão e controlo que funciona de forma eficiente e eficaz e que confere níveis segurança razoáveis, tendo a administração pública portuguesa revelado a sua capacidade de gestão, mesmo numa conjuntura económica e financeira difícil e sem precedentes…”, apreciação que não foi feita a mais nenhum outro Estado membro.

Nos anteriores ciclos de fundos europeus também houve notícias sobre fraudes na utilização dos fundos, embora essas notícias, na generalidade dos casos, tivessem base na iniciativa de deteção e correção promovida pelas próprias autoridades nacionais.

Se esta foi a evolução resumida da gestão dos fundos europeus em Portugal, então o que mudou ou o que não foi feito para justificar as notícias?

Não sei se no IAPMEI houve de facto um caso lamentável de corrupção nem pretendo sobre isso especular. Dou mais relevo às notícias de fraude na utilização dos fundos não detetada pelas autoridades nacionais. Dou mais atenção às notícias sobre queixas não atendidas e sobre exigências desproporcionadas e discricionárias. Porque ambas criam o ambiente que facilita a ocorrência da primeira.

Deixo algumas pistas de reflexão sobre o que mudou ou sobre o que não foi feito no sistema de gestão e controlo e que poderá ter favorecido a ocorrência dos casos relatados pela comunicação social.

  1. O modelo de autoridades de gestão profissionais, com procedimentos claros, objetivos e públicos, foi sendo aperfeiçoado no sentido de aumentar o escrutínio público da sua atividade, a prestação de contas e a responsabilidade pelas decisões adotadas. O aperfeiçoamento deste modelo passava pela redução do número de organismos intermédios e das funções por estes exercidas.
    A intervenção dos organismos intermédios (IAPMEI, AICEP, ITP, etc., etc.) baseia-se no reconhecimento de um valor acrescentado para a gestão e no reconhecimento, pela autoridade de gestão, da existência de meios humanos e materiais e de uma organização que permitam a delegação do exercício de algumas funções de gestão, embora a responsabilidade não seja delegável ou transmitida.
    Primeiro equívoco: antes que as autoridades de gestão tivessem avaliado o valor acrescentado obtido com a participação de um organismo intermédio e a existência de condições objetivas para a delegação de funções, era já decidido quais seriam os organismos intermédios e para que funções.
    Segundo equívoco: o contrato de delegação de funções baseia-se no reconhecimento pela autoridade de gestão da existência de meios humanos e materiais e de organização adequada para o exercício das funções delegadas. Não obstante e sempre que ocorrem prazos alongado para as decisões, o argumento recorrente é a falta de meios e de recursos humanos! Afinal, estavam em condições de serem reconhecidos ou não?
    A evolução esperada para o papel dos organismos intermédios passava pela manutenção nas autoridades de gestão das principais funções deliberativas e na redução efetiva do número de organismos a intervir na gestão dos fundos.
    Qual foi a situação a que chegámos? A disseminação de organismos intermédios, cada ministério que se preze, cada política pública que se quer importante, tem o seu; as decisões tomadas por eles e as regras administrativas são crescentemente por eles definidas!
    A descentralização obtida pelos programas regionais e a melhoria de uma decisão de proximidade que eles permitem, foi paulatinamente anulada pela intervenção acrescida de organismos intermédios – na generalidade entidades da administração central que na prática decidem nos programas regionais.
  2. No decurso do QREN foi desenvolvido o objetivo de reforçar e centralizar a função de tesouraria, assegurando uma gestão mais eficaz, eficiente, mais barata e mais segura, tendo sido obtidos prazos de pagamento crescentemente mais curtos (apenas de alguns dias) que nos destacaram pela positiva no conjunto dos Estados membros.
    A evolução natural e de resto apresentada à UE seria no sentido de aprofundar esse modelo a todos os tipos de beneficiários.
    Como estamos hoje? Cada organismo intermédio que se preze faz os pagamentos aos “seus promotores”. Substituíram-se sistemas de informação robustos por uma disseminação de tesourarias. Com prazos de pagamento alongados, a crer nas queixas públicas. Às vantagens dos procedimentos de homebanking, baseados em sistemas seguros e rápidos, sobrepôs-se a noção do pequeno poder de quem “passa o cheque”!
  3. O Portugal 2020 introduziu como novidade a peça que faltava no edifício da gestão e do controlo dos fundos: uma estrutura independente que cuidasse dos interesses dos candidatos, dos promotores dos investimentos e dos seus consultores, que os levasse a percecionar que o próprio sistema detinha modalidades para avaliar de forma consequente e com a necessária reserva as suas queixas surgidas, independentemente do seu fundamento e razoabilidade.
    Dessa estrutura se esperava também um contributo no sentido de evitar as exigências administrativas desproporcionadas, desajustadas ou mesmo não justificadas pelos regulamentos.
    Qual é a situação atual? Essa estrutura foi descontinuada. Que temos para oferecer a quem entenda recorrer das decisões administrativas? Apenas os tribunais. Em que prazos? De anos!

A utilização dos fundos europeus estruturais e de investimento constitui a política pública seguramente mais escrutinada e sujeita à mais exigente e sistemática prática de prestação pública de contas. Não sei se houve de facto corrupção.

Creio todavia que o sistema de gestão e controlo podia conferir mais confiança.


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