Crónica da sociedade algarvia: Tavira – entre a estética do património e a política de bastidores

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Na ponta mais a sul do país, onde o Atlântico abraça a terra com sal e vento, ergue-se o Algarve – não como simples destino turístico, mas como um espelho vibrante de uma sociedade em transformação constante. Aqui, entre o mar e a serra, vive um povo com alma de resistência e espírito de festa, entre o orgulho das raízes e a inquietude do futuro.

A sociedade algarvia é feita de contrastes: pescadores de Olhão que ainda cantam o mar ao amanhecer, agricultores da serra de Monchique que conhecem o cheiro da esteva e da terra quente, e jovens que se cruzam nos cafés de Faro com o olhar preso aos ecrãs, mas o coração preso à terra.

Há um Algarve antigo, de vizinhança e feiras, onde as histórias se contam nas sombras das alfarrobeiras. E há um Algarve novo, mais urbano, mais cosmopolita, onde se fala tanto inglês como português, onde a tradição se adapta e se reinventa.

O turismo é a bênção e o dilema da região. Trouxe desenvolvimento, mas também dependência. Enche as ruas de Lagos e Albufeira no verão, mas deixa-as vazias no inverno. Os preços sobem como marés, e muitas vezes quem cá nasceu vê-se empurrado para a periferia da vida que construiu.

Ainda assim, os algarvios resistem com a sabedoria de quem conhece os ciclos da terra e do mar. Inventam-se novas formas de viver a identidade: mercados sustentáveis, festivais de cultura local, associações que recuperam tradições quase esquecidas como a arte xávega ou o medronho caseiro.

Ser algarvio é viver com o tempo. Com o tempo bom, que traz turistas e sorrisos, e com o tempo difícil, quando o trabalho escasseia e a saudade aperta. É rir com facilidade e queixar-se com jeito. É ter orgulho no sotaque cantado, no peixe fresco, no pão com chouriço e na amêndoa amarga que aquece conversas.

A sociedade algarvia não é perfeita – nenhuma é. Mas carrega consigo uma herança árabe de engenho, uma memória rural de trabalho duro, e uma modernidade que não quer esquecer o passado. Entre as rotundas e os laranjais, entre o barulho dos bares e o silêncio das marés, o Algarve continua a ser mais do que paisagem: é identidade.

No fim, o que define esta sociedade não é só o lugar onde vive, mas a maneira como vive o lugar. Com sol na pele e sal na língua, com um pé no futuro e outro bem assente na terra vermelha que a viu nascer.

Tavira é para muitos a menina dos olhos do sotavento algarvio: ruas empedradas, casas caiadas com rendilhados de ferro forjado, o rio Gilão a cortar a cidade em dois como se fosse um espelho de outra época. Mas por detrás desta beleza cuidada, muitas vezes posta ao serviço da estética turística, há uma política local feita de silêncios prolongados, promessas adiadas e jogos de poder mais antigos que a própria ponte romana.

Quem vive em Tavira sente uma estranha paralisia. As decisões importantes arrastam-se: do Plano de Urbanização com a promessa de construção de habitação a custos controlados, para possibilitar a fixação dos nossos jovens Tavirenses, às promessas da reorganização dos transportes, assim como à regeneração da frente ribeirinha. Tudo parece sempre “em estudo”, “em fase de avaliação”, “em análise técnica”. Esta gestão do compasso de espera torna-se, na prática, uma estratégia: adia-se o essencial enquanto se inaugura o acessório.

Durante anos, Tavira foi gerida como uma montra patrimonial. Tudo tem de parecer bem, ainda que não funcione por dentro. As questões estruturais, como a habitação, os acessos à Ilha de Tavira, a mobilidade intermunicipal ou o desenvolvimento económico sustentável, ficam no segundo plano de um discurso político centrado na “qualidade de vida”, muitas vezes apenas medível à distância.

E enquanto se tapam buracos com asfalto novo, continuam por resolver problemas de décadas: mobilidade, desertificação do interior, saúde pública e habitação.

A recuperação do centro histórico trouxe vantagens, mas também riscos. Tavira tornou-se um destino de “segunda residência” para reformados estrangeiros e investidores imobiliários. Resultado? O preço das casas subiu exponencialmente, os jovens e os trabalhadores locais são empurrados para fora da cidade, e o tecido social começa a deslaçar-se.

As políticas de habitação são tímidas, com pouca ousadia para enfrentar os grandes interesses fundiários. A reabilitação urbana serve mais o visitante do que o residente. E a cidade corre o risco de se tornar um cenário bonito, mas sem vida autêntica, uma Tavira de fachada, para inglês ver.

Ainda assim, há sinais de mudança. Tavirenses mais jovens começam a intervir, a questionar, a exigir. Há coletividades que resistem à instrumentalização política, movimentos ambientais atentos às ameaças sobre o território (como as pressões urbanísticas junto à Ria Formosa), e cidadãos que recusam continuar a assistir calados ao esvaziamento da cidade real.

Tavira precisa de mais do que gestão. Precisa de visão, coragem e abertura. Precisa de um poder local que não se esconda atrás da beleza urbana, mas que encare de frente os desafios sociais, económicos e ambientais do século XXI.

Porque não basta preservar o património se não se cuida da vida que nele devia acontecer. A cidade mais bonita do Algarve pode também ser a mais estagnada ou pode escolher ser exemplo de como tradição e transformação podem caminhar juntas. Mas, para isso, é preciso romper com a política de inoperância, do “sempre assim foi”.

Tavira tem condições, Tavira tem potencial, Tavira precisa de quem faça mais e verdadeiramente melhor.

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