“Quando a pandemia nos atingiu todos sabíamos que podíamos contar com o melhor dos profissionais de saúde. Mas sabíamos que a primeira forma de evitar era a máscara, o distanciamento, para nos protegermos. Aqui é a mesma coisa”
Por uma vez, estou de acordo com António Costa: “aqui é a mesma coisa”.
Só não estou de acordo com a parte que antecede o “aqui é a mesma coisa” porque há um diferença substancial sobre a gestão de uma epidemia e a gestão do fogo: nós podemos gerir o contexto do fogo, ao contrário do que acontece em relação ao contexto de uma epidemia.
Embora quer uma epidemia, quer o fogo, sejam filhos dos seus contextos, embora uma epidemia e o fogo dependam de acontecimentos pontuais (pontuais no sentido de ocorrerem em tempo e espaço muito limitados, não no sentido da sua frequência, que é enorme) a que num caso chamamos contágio e no outro ignição, a epidemia tem o seu contexto nas características das populações que afecta e dos agentes patogénicos que lhe estão na base, potenciados pela meteorologia, e o fogo tem o seu contexto na quantidade e estrutura dos combustíveis finos que existem no território, também potenciado pela meteorologia.
A nossa capacidade para alterar o contexto de uma epidemia é muito limitada, mas a nossa capacidade para alterar o contexto do fogo é bastante grande, difícil e cara, mas grande.
António Costa já fez a sua opção: como na pandemia correu bem a estratégia de disparar para todo o lado quando estava entalado, para demonstrar que se fez tudo o que era possível, e quando corria mal responsabilizavam-se os malandros que não cumpriam regras e faziam coisas horriveis como celebrar o Natal, o melhor é adoptar o mesmo procedimento neste caso.
Já ninguém tem a menor preocupação com a defesa da floresta contra os incêndios, já toda a gente está alinhada com a estratégia da defesa contra os incêndios da floresta, e António Costa pode agora dedicar-se à defesa da sua reputação política contra eventuais problemas causados pelo fogo.
Não é natural que seja este ano que aconteça um novo Pedrogão porque há muita área ardida recentemente, e são precisos 12 a 15 anos para que o risco esteja perto do máximo, mas se por acaso acontecer, António Costa já tem a resposta engatilhada: as pessoas foram irresponsáveis e não seguiram as indicações das autoridades.
“Portugal sem fogos depende de todos”, uma ideia criminosa que parecia ter passado à história, está de regresso com toda a força para disfarçar cinco anos de tretas na gestão do contexto do fogo: atrasos no fogo de gestão, arrastar de pés no pagamento de serviços de ecossistema, matrioscas de planos para disfarçar inoperância na gestão de combustíveis, faixas de gestão de combustíveis a que ninguém liga nenhuma, por se reconhecerem inúteis, e milhões, milhões, deitados sobre um problema, com o resultado classico dessa opção: quando se deita dinheiro para cima de um problema, uma das coisas desaparece, mas raramente é o problema.
O que, infelizmente, vai reforçar a hipótese de uma tragédia por volta de 2030.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.