Henrique Pereira dos Santos

“E agora plantam árvores, é?”

Ontem estive, como curioso, que eu não sou técnico de fogo controlado, numa queima de vinte hectares do baldio de Carvalhais, São Pedro do Sul, que estão integrados nos cerca de cem hectares que a Montis gere nesse baldio.

Ao longo do dia fui usando alguns videos e fotografias para ilustrar o que é uma queima controlada, como evolui e que efeitos podem ser observados, um dos quais um video sobre o chão em que o fogo tinha passado há dez minutos, mostrando algum musgo razoavelmente verde e a evidência de que num fogo de baixa intensidade o solo não arde, e minutos depois de passado o fogo, o chão está frio.

A razão para ter feito esse video, e o ter publicado, é porque há muita gente que tem objecções ao uso do fogo controlado com base na ideia, errada, de que todos os fogos tem impactos no solo, o que está longe de ser verdade: dependendo a energia libertada pelo fogo, e das condições de humidade no solo, os efeitos podem ser substancialmente diferentes.

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Essa fotografia que Paulo Fernandes usou há minutos num comentário sobre efeitos dos fogos é uma boa ilustração do que acima foi dito: esta área, na serra da Freita, ardeu em 2016 (uns milhares de hectares ardidos) e à esquerda do tracejado está uma área que tinha sido tratada com fogo controlado algum tempo antes do fogo do Verão de 2016, e à direita uma área que não tinha sido objecto de fogo controlado.

Os efeitos do grande fogo de 2016 são evidentemente diferentes, e prendem-se com o facto do fogo controlado ter removido parte dos combustíveis (para além de outras coisas) o que diminuiu a intensidade do fogo (a energia que irradia) e, consequentemente, a sua severidade (o efeito na vegetação).

O título deste post é um comentário feito ao tal video que usei ontem “E agora, plantam árvores, é? Quais são as próximas acções?”, querendo perguntar-se que acções subsequentes à queima de ontem pretende a Montis fazer na área ardida de ontem.

A pergunta é muito interessante porque, na verdade, pressupõe – involuntariamente, suponho – que queimar só faz sentido para se fazer alguma coisa melhor depois.

Esse pressuposto faz algum sentido, mas na verdade a acção de queimar uma área pode não pressupor a criação de condições para outras acções, mais positivas, a queima é, em si, uma intervenção de gestão de ecossistemas que, em muitas circunstâncias, é positiva por si só.

Na tal área de baldio estava a ocorrer uma evolução de sistemas frequente na paisagem portuguesa.

A área terá sido, nos últimos cinco mil anos (enfim, não se tome esta frase à letra, as coisas foram andando com altos e baixos) a reserva de fertilidade e a origem de água de rega das terras agrícolas mais abaixo, o que significa que terá sido explorado através de um modelo tradicional de pastoreio e fogo.

Com o abandono rural – e a descoberta da síntese da amónia que permitiu criar fertilidade nas fábricas de adubos do Barreiro em vez de se depender da extracção de nutrientes destas encostas com recurso aos animais – a gestão destas áreas foi abandonada (depois de um período intermédio de florestação), os matos foram-se acumulando e os fogos passaram de fogos de baixa intensidade, em mosaico e frequentes, para fogos menos frequentes, de maior intensidade e intensidade. (De forma mais extensa, desenvolvo estas ideias aqui)

Naquelas encostas a giesta está especialmente bem adaptada, e o resultado visível são hectares e hectares de giestal denso e contínuo que arde periodicamente com intervalos de 10 a 15 anos. No muito longo prazo, esta evolução iria caminhar no sentido de carvalhais maduros, de forma bastante lenta porque sendo verdade que os nutrientes que estão nos tecidos das plantas irão, a prazo, ser parcialmente incorporados no solo, também é verdade que o processo natural de crescimento, lenhificação, morte e decomposição das giestas é muitissimo lento e o ensombramento que o giestal cria impede o desenvolvimento de vegetação junto ao solo.

Ao queimar com maior frequência, com menor intensidade e em condições meteorológicas e de humidade do solo que permitem a não afectação do solo e da matéria orgânica nos solos, o que se está a fazer é manipular o processo de crescimento e reposição da fertilidade descrito acima, criando um atalho.

O fogo, que é bom não esquecer que é um processo ecológico presente na esmagadora maioria dos ecossistemas terrestres muito antes de haver pessoas, permite quebrar as cadeias químicas complexas que formam os tecidos complexos das plantas, disponibilizado nutrientes directamente utilizáveis pelas plantas em muito menos tempo que através do processo que estava a ocorrer.

Ao fazer isso e, ao mesmo tempo, remover o ensombramente que impede o crescimento das plantas abaixo do copado das giestas, o que se está a fazer é acelerar o processo de recuperação do solo e dos sistemas naturais, o que pode ser bastante melhorado com a introdução de animais.

Isto é, mesmo que não fossem feitas acções posteriores à queima – e também são feitas, nomeadamente de retenção do solo – a queima não seria uma acção negativa que permitia acções positivas, seria uma acção positiva de gestão de sistemas em si mesma.

Como em muitos outros assuntos, temos dificuldade em admitir que somos muito pequeninos, podemos, “com longa experiência e honesto estudo” influenciar os processos naturais, mas na verdade podemos muito menos do que pensamos e a evolução de processos naturais depende muito menos das nossas opções do que pensamos.

O corolário desta ideia é a de que as intervenções radicais para compormos o mundo são geralmente ineficazes e, infelizmente, aqui e ali, com muito mais efeitos negativos que positivos.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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