Em Armamar o liberalismo funciona e apaga fogos

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A madrugada do dia 9 de Setembro de 1984, terá sido provavelmente a noite mais longa da história de Armamar e da aldeia de Lumiares. Por volta das três horas da madrugada, uma brigada de busca e salvamento dos Bombeiros Voluntários de Armamar chegava a casa do meu pai a pedir ajuda para procurar catorze bombeiros desaparecidos. Perante esta situação e na qualidade de presidente da junta o meu pai mandou tocar o sino a rebate para reunir os homens válidos que conhecessem a serra de olhos fechados. Foi desta forma que se montou uma operação de busca e salvamento que englobava bombeiros e populares. À medida que o dia foi clareando, guiados pelo cheiro de carne queimada, foi sendo possível encontrar os corpos ainda fumegantes dos catorze bombeiros desaparecidos.

No livro “Cercados Pelo Fogo”, do professor Domingos Xavier Viegas, o autor explica de forma detalhada o fenómeno atmosférico e todas as nuances do terreno que estiveram na origem desta tragédia. Mas a verdadeira causa da morte dos catorze bombeiros não foi o terreno nem um qualquer fenómeno atmosférico. Houve um tempo em que a Serra de Lumiares (um conjunto de montanhas subjacentes à Serra de Leomil) era terra fértil de cultivo. Ali era possível produzir milho, centeio, trigo, batatas  e apascentar o gado. Até as partes rochosas cobertas por pinhais e carvalhais frondosos eram devidamente limpas, porque as pessoas precisavam de combustível para as lareiras e de matéria orgânica para fertilizar os terrenos. Depois da segunda guerra mundial, a emigração massiva de gente para o Brasil, para a Europa, para as colónias e para a Área Metropolitana de Lisboa levou a uma fortíssima desertificação e ao consequente abandono dos terrenos agrícolas e da floresta. Quando chegamos aos anos 80, a serra tinha-se transformado num barril de pólvora, à espera de ser detonado. A desertificação do interior e o abandono das terras foi a causa remota da tragédia dos bombeiros de Armamar.

Em Junho de 1985, menos de um ano depois dos trágicos acontecimentos, Mário Soares assinaria o tratado de adesão à CEE, algo que vira a ser decisivo para a transformação do território de Armamar. Os fundos comunitários e a liberdade económica viriam a transformar a realidade da parte mais elevada do concelho, que também era a que estava mais exposta ao risco de incêndio. Gradualmente, a área agrícola destinada à agricultura de subsistência, foi dando lugar a uma agricultura de mercado. A determinada altura foi necessário recorrer aos terrenos que tinham sido abandonados e mais tarde até os terrenos que nunca tinham sido cultivados foram convertidos em terrenos agrícolas. Isso foi possível graças à capacidade de investimento dos agricultores e aos fundos comunitários, que financiaram a implementação de tecnologias de fertilização e irrigação. Isto levou a que fosse possível transformar terrenos muito pobres em áreas férteis. Nos anos 90 engenheiros israelitas ajudaram a implementar os primeiros sistemas de rega gota a gota, à época um sistema altamente inovador.

Nos anos 90 as serras de Armamar voltaram a arder mais algumas vezes, mas com cada vez menos intensidade. Nos anos 2000, atividades exercidas de forma extrativistas como a pastorícia, que recorriam ao fogo para renovar os pastos, foram substituídas pela fruticultura. Esta situação poria um fim definitivo à possibilidade grandes incêndios em Armamar. A compartimentação das áreas florestais e a redução do número de ignições reduziram muito o risco de incêndio.

Pela tragédia que lá aconteceu é provável que Armamar seja o melhor exemplo que temos em Portugal de como podemos mitigar os fogos florestais. Este concelho “acabou” com os incêndios sem precisar de coisas absurdas e inconsequentes como a lei de bases da floresta. Só alguém profundamente incompetente, pode pensar que se resolve um problema desta monta com uma canetada num qualquer gabinete ministerial. O que de facto mudou o panorama em Armamar, foi uma economia livre e desregulada que apenas obedece às lógicas de mercado, a capacidade de trabalho das suas gentes, os fundos comunitários e o investimento público em infraestruturas como a barragem de Lumiares. Um dos pormenores mais interessantes está no facto de a produção de maçãs ter começado de forma experimental nos anos 70. Isto prova que as soluções que de facto funcionam, requerem tempo e a resiliência de todos os envolvidos para gerarem os efeitos pretendidos.

Depois dos incêndios de 2024, o arquiteto paisagista Henrique Pereira dos Santos afirmou que a única forma de se evitarem os incêndios de grandes proporções, é termos  economia no mundo rural. É precisamente isto que Armamar anda a construir há décadas. A atividade económica principal de Armamar desenhou uma paisagem sem grandes continuidades florestais. Mas para termos economia, precisamos de ter um estado que não estorve, que tenha capacidade de investir e que o saiba fazer de forma eficaz e eficiente. Precisamos também de capacidade investimento privado e acima de tudo, de um tipo de economia que gere os incentivos certos a todos os intervenientes no processo. Por outras palavras, precisamos de  ter atividades lucrativas. Pensar que se podem obrigar os proprietários florestais a gastarem o seu dinheiro, para limparem terrenos que não dão lucro, é simplesmente absurda. A recente construção de um parque eólico e de um parque solar, veio criar ainda mais entraves à progressão do fogo.

Como é óbvio os agricultores de Armamar não plantaram macieiras, cerejeiras e castanheiros para combaterem os incêndios, mas essa foi a consequência da sua ambição económica. Se estas produções agrícolas estivessem sujeitas a uma serie infindável de regulamentos e burocracia, se o preço dos produtos estivesse definido de forma administrativa, Armamar continuaria a ser um  barril de pólvora como aquele que matou os seus catorze bombeiros. O incêndio de 15 de Outubro 2017, que ocorreu na bacia hidrográfica do Mondego, foi o maior de que há registo. Este nunca teria acontecido se esta região tivesse uma paisagem semelhante à de Armamar.

Nos terrenos abandonados onde começou o fatídico incêndio do dia 8 de Setembro de 1984, nos anos 2000, o sr. Luís Pedreiro plantou um pomar de macieiras com cerca de 10 hectares. Ou seja, hoje essa tragédia seria impossível. Acontece que o sr. Luís não nasceu empresário. Como a maioria das pessoas desta região, que nasceram em 1959, nasceu pobre e começou a trabalhar quando ainda era uma criança. A economia de livre mercado e desregulada  exposta neste artigo “Armamar a terra onde o liberalismo triunfou” fizeram de uma pessoa pobre, mas trabalhadora, um empresário agrícola responsável pela produção de 300 toneladas de maçãs. O exemplo do sr. Luís Pedreiro (que está muito longe de ser o único) mostra que quando existe uma economia de livre mercado, é possível a alguém que nasceu pobre possa vir a ser empresário, ajudando a transformar a sua vida, a vida dos outros e até a paisagem.

Se algum dia existir um governo que queira de facto mitigar de forma efetiva os incêndios florestais, que saia de Lisboa e vá a Armamar ver como isso foi feito.

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