Em Trás-os-Montes, o que vem da terra já não chega para o gado e as abelhas

Numa região habituada ao verde das suas serras e dos seus pastos nos Invernos de neve e chuva, as vacas, ovelhas, cabras e abelhas estão a ficar sem o que comer e beber. As forragens não medram, a água escasseia, as flores não têm néctar, depois de um mês em que mais de 60% do país estava em seca extrema. Resta recorrer às rações, uma solução não só cara mas também agora ameaçada pela guerra.

“Anda, ‘Vaidosa!’” Filomena chama a vaca barrosã, corpo castanho e cornos enormes, para que entre no estábulo. É hora de recolher, já depois das cinco e meia da tarde. Chama ainda a “Fanny”, a “Gabi”, a “Boneca” e outras tantas. “Todas têm nomes.” E Filomena e o marido, Alfredo, distinguem-nas bem. Os animais pastam junto de uma levada, numa nesga de terreno onde umas ervinhas verdes despontam, contrastando com a restante propriedade com pasto amarelado e seco. “Elas cá fora não têm praticamente nada que comer e põem-se aqui à espera da hora do recolher”, repara Filomena.

Alfredo Cadime, de 65 anos, e Filomena Loureiro, de 61, são produtores de carne barrosã, raça de bovino autóctone portuguesa, na povoação de Carreira da Lebre, muito próxima de Boticas. Têm 16 vacas barrosãs reprodutoras e dois bois castrados, “para fazer as tais carnes maturadas”. “Todas Denominação de Origem Protegida [DOP], linha pura”, diz Alfredo, orgulhoso de continuar o percurso do pai e por ter já quem lhe suceda.

Quando olham para a água que corre naquele troço do rio Beça, conhecido pelas suas trutas, o que vêem resume perfeitamente o aperto que os criadores de gado da região do Barroso enfrentam. É início de Março e o Inverno, que em teoria acaba dali a umas semanas, ainda não chegou. Choveu e nevou muito pouco nestes últimos meses e, por isso, “as nascentes e os lençóis de água começam a ficar mais fracos”. Noutra parte deste concelho do Norte do país, os bombeiros tiveram de ir encher o depósito de água que serve a aldeia de Valdegas no início de Fevereiro. Uma situação inédita no Inverno, que só costuma acontecer nos Verões mais quentes, quando a população — e o consumo de água — aumenta com a chegada dos emigrantes.

O rio Beça era para andar cá em cima, alagando os campos. “Calhava de ter épocas em que chegava aqui acima. Parecia quase o mar”, recorda Alfredo. Filomena até diz que era demais, que atrapalhava o trabalho. “Aquele alto ficava cheiinho. Chegava quase até à barriga.”

São os efeitos da seca que assola as explorações da zona — em rigor, todo o país continental. Em Janeiro, todo o território entrou em situação de seca meteorológica. Em Fevereiro, mais de 60% do país estava em seca extrema, fazendo deste mês o terceiro mais seco desde 1931.

“Nesta época, era para estar tudo verde”, diz Alfredo. As forragens semeadas não medram. “E já era para terem aí uns 40 centímetros de altura.” A exploração da família Loureiro Cadime está dividida em 22 parcelas, no total de 22 hectares. Alguns terrenos foram herdados, outros comprados. Só este, no qual o rio Beça corre, tem nove. Servem para semear cereais, como o milho e centeio e pasto para as vacas mastigarem e ainda fazer reservas de feno para o resto do ano.

Por esta altura, o centeio já acabou e o milho está para acabar. O feno deve chegar, mas, para o ano, teme o produtor, não haverá reservas de cereais para alimentar os animais. “Isto vai-se reflectir, mas não é já.”

As vacas continuam a procurar as ervinhas mais verdes que a humidade do rio fez brotar. Mas eles sabem que aquilo não as satisfaz. “Se estivesse bom, estavam só no pastoreio. Elas estão ali a olhar, à espera para comerem a silagem. E alguma ração de produção biológica, que é caríssima agora”, diz Alfredo.

Este produtor do Barroso está a fazer a transição para este tipo de produção. “Já tenho de cumprir todas as regras. Não podemos usar fertilizantes, pesticidas, herbicidas. É só o estrume dos animais. Utilizamos estes fios para as moscas e elas ficam coladas. Nada é pulverizado.”

A ração também tem de ser de produção biológica. Fica quase a dois euros o quilo. Um saco está quase nos 30 euros e, se fosse para alimentar à vontadinha, cada animal comia um quilo por dia. “Enquanto temos a silagem do milho, ainda nos safamos. Mas não dura sempre”, insiste Filomena.

O rádio está ligado a fazer companhia. “Fusca”, a “cachorra” labradora preta, corre para trás e para a frente à volta do estábulo. Lá dentro, estão dois vitelos prontos a ir para abate. E uma vaca pronta a parir a qualquer momento.

Os animais, para já, não estão em risco, garantem. Os custos é que começam a ser maiores, diz Alfredo, que olha à sua volta, preocupado: “Nesta parte aqui de trás, nascia água e [agora] está seco. Nunca me lembra de secar. Tanta seca como este ano não me recordo.”

“O melhor cabrito de Trás-os-Montes”

Até ao Gerês, estas são as altas Terras do Barroso, onde o monte baldio, das giestas e das urzes, é de todos. Habituadas ao verde das suas serras e campos, à água que corre debaixo das terras, boas para batatas, cereais e para os lameiros tradicionais, vacas, ovelhas e cabras crescem com o que a terra dá. Só que as terras estão a deixar de dar. Há menos água, mas também menos braços dos novos, que fogem à procura de melhor sorte.

Francisco Forte, de 40 anos, também chegou a fugir há uns anos para ir fazer o curso de Engenharia Zootécnica. Mas decidiu regressar a Boticas. “É a minha terra.”

Há cinco anos, “sem grandes condições”, com abrigos construídos por si, e a “arriscar um pouco”, criou a própria exploração. Meteu-se no negócio confiante “nas ajudas que o Estado dá”, mas está a ser difícil aceder a subsídios “por causa da organização dos baldios”. “Ando num labirinto burocrático para aí há dois anos. Não sei se será compensador.”

Francisco comprou o rebanho a um pastor que decidiu abandonar as lides. Começou com 35 animais. Hoje tem 130 cabeças de gado, entre cabras — umas serranas de pêlo negro, comprido, com peladas claras e cornos torcidos — e ovelhas. “Tenho aqui uma mistura muito grande.” Para já, não tem condições para ter mais e a criação ainda não lhe permite fazer dinheiro para sobreviver. “É um começo.” Ainda mais atribulado pela falta de pasto disponível nos seus terrenos.

Como a partir de Dezembro é altura de partos, Francisco preocupa-se com a alimentação das fêmeas para que possam alimentar as crias. Sem poder contar apenas com o que a natureza dá, comprar fenos e ração será um gasto a mais para este ano, calculado por alto em cerca de dois mil euros.

Há uma sinfonia de balidos, mais ou menos jovens. Cabras de um mês andam no meio das mães paridas e das ovelhas. Percorrem a estrada de alcatrão em busca de pasto que alimente, num terreno que costuma estar reservado para o pastoreio nos meses mais quentes. “Já tenho de as trazer para aqui. Quando chegar ao Verão, aqui não tem nada”, lamenta Francisco.

O cão corre atrás delas, elas à frente deles, chocando umas com as outras, no regresso ao estábulo remediado que o criador construiu sozinho. “Isto é tudo improvisado.” Fez uma estrutura com andaimes a sustentar, pregados ao chão com cimento, revestidos de chapas que aproveitou de outra construção.

As cabrinhas vão procurando uma fêmea que lhes satisfaça a fome. Francisco tem o sonho de produzir leite e queijo. Para isso, gostava de montar uma sala de ordenha, mas o investimento — que estima em mais de 100 mil euros — é demasiado elevado. “Talvez um dia.”

Às vezes questiona-se sobre o porquê de perseguir um trabalho que não lhe dá retorno imediato. “Para que é que eu tenho este sonho?” Mas olha à volta e vê gente a desaparecer, terras desertas. “Eu acho que temos condições excepcionais para a produção de caprino. Eles gostam é de monte, de urze, de giesta.”

Cumprir esses objectivos dependerá dos subsídios que lhe forem atribuídos, diz. “É o Estado que vai decidir se eu vou ser agricultor ou não.” Quem sabe possibilitar-lhe atingir a meta mais ambiciosa: “Quero ter o melhor cabrito de Trás-os-Montes.”

Chuva, ajudas e um clamor

Pede-se chuva e ajuda do Governo para fazer frente a uma situação de seca como dizem nunca ter vivido. “O futuro a Deus pertence. Mas que isto está muito mal está”, atira Albano Álvares, presidente do conselho de administração da Cooperativa Agro-Rural de Boticas (Capolib), fundada em 1952.

Sem pastos novos para se alimentarem, os animais estão a comer o que há em casa. “Uma agricultura débil como a nossa, apoiada na agricultura familiar, com estes problemas todos… o futuro não é muito risonho”, […]

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