A minha avó Esperança dizia “Antes quero que tenham raiva do que tenham pena de mim!”. Certamente passou tempos difíceis quando ficou viúva em 1943, em plena segunda guerra mundial, com 5 filhos pequenos (o mais velho com 12 anos e o mais novo com meses) e uma pequena casa de lavoura para gerir. É natural que tenha sido alvo de pena nessa altura. Apesar disso tocou a vida para a frente e com um empréstimo da “Ti Ana Barrigas” ainda comprou dois campos. Talvez isso tenha despertado a raiva de alguém. Daí a sua afirmação, se tinham raiva dela é porque estava melhor do que quando tinham pena.
A minha infância e juventude foi mais fácil do que a da minha avó, do meu pai e dos meus tios, mas durante anos lutei contra a “pena” com que os agricultores eram olhados pela sociedade ou que dirigiam a si próprios. A imagem do agricultor velho, pobre, sujo, analfabeto, sem direito a férias, descanso e a todos os confortos do ambiente urbano, persistiu ao longo do tempo na mentalidade dos portugueses. Passei boa parte da minha vida a dizer que valia a pena os jovens apostarem na agricultura, que é possível ter um rendimento digno, horários de descanso, ir regularmente ao shopping e passar alguns dias de férias no Algarve. Que é possível os agricultores terem uma vida “normal”. Esta evolução só foi possível para quem aumentou a dimensão da empresa agrícola e recorreu à mais recente tecnologia. Quem ficou parado no tempo já deixou a agricultura por falta de rendimento, de condições ou sucessores.
Curiosamente, nos últimos anos o sentimento face aos agricultores parece ter passado do oito para o oitenta, da pena para a raiva. Raiva contra os agricultores que usam adubos, pesticidas e sementes híbridas ou transgénicas. Raiva contra os agricultores que criam vacas, porcos ou galinhas. Raiva contra as estufas, a agricultura intensiva ou simplesmente convencional (a agricultura normal, que produz 99% dos alimentos). Essa raiva é maior quanto maior for a empresa agrícola. Eu ainda não percebi a partir de quantas vacas, quantas galinhas ou quantos hectares de terra é que passamos do escalão de “simpático pequeno agricultor do minifúndio” para “malvado latifundiário da agricultura industrial”. E agora, que fazer? Preso por ter cão e morto por não ter. Se ficar o bicho pega, se correr o bico come…
Em 2010, a nossa semana de férias passou por Odemira, cujo maior defeito é ficar longe, pois demora tanto a chegar lá como ao Algarve. Ficámos numa casa de Turismo Rural indicada pelo meu colega Eusébio Viana e pela Ana Lúcia, que têm a vacaria em Almograve. Jantámos com eles numa pizzaria em S. Teotónio. Passámos junto ao ZMar, a caminho da vacaria da família Pronk, onde tirei a foto que usei durante anos como foto de perfil nas lutas do leite. O Eusébio levou-nos também de passagem a ver os campos de produção de relvado e as Estufas de horticultura. Odemira é uma terra fantástica para a agricultura, combinando o calor do Alentejo moderado pela proximidade do mar com a água do rio Mira disponível na Barragem de Santa Clara. Não têm sido os meus colegas produtores de leite em Odemira que tem estado debaixo de fogo nestes dias, mas também sofrem com isto. Não conheço pessoalmente os horticultores, mas estou solidário com todos os que tem sido vítimas de julgamentos sumários de comentadores que metem tudo no mesmo saco e podem prejudicar empresas e trabalhadores, tanto os que recebem um bom ordenado como os que são vítimas de exploração e más condições. Fiscalizem, investiguem, definam regras e separem o trigo do joio, com respeito pelos trabalhadores de todas as nacionalidades e pelos agricultores de todas as dimensões. Um abraço para Odemira!
#carlosnevesagricultor
O artigo foi publicado originalmente em Carlos Neves Agricultor.