Representando a Coordenadora Europeia Via Campesina (ECVC) para a Região da Europa e Ásia Central no Comité Directivo da Década das Nações Unidas para a Agricultura Familiar 2019-2028 (UNDFF), considero de fundamental importância o fortalecimento das organizações da Agricultura Familiar.
Decorrida já a terça parte da Década, este é o momento adequado para fazer o balanço do que já foi alcançado, definir objectivos, propor medidas de política pública para cumprir a Década.
Reportando-me à região Europa e Ásia Central, com meia centena de países, não posso deixar de valorizar o trabalho realizado, mas creio ser mais necessário identificar as dificuldades encontradas para projectar o futuro.
Sete Planos de Acção Nacionais, alguns ainda numa fase embrionária, é pouco.
Particularmente nos países integrados na União Europeia e submetidos às regras e imposições da Política Agrícola Comum (PAC), apenas em Espanha e em Portugal, e por iniciativa das organizações da Agricultura Familiar e outras entidades da sociedade civil, foram construídos Planos Nacionais, mas ainda não adoptados pelos respectivos Governos. Facto negativo recente é a não aceitação pelo Senado de Itália de uma Lei de valorização da Agricultura Familiar aprovada no Parlamento.
Consideramos positiva a produção de mais de cem leis em 13 países, ainda que a maior parte não sejam Planos Integrados impulsionados pela Década, mas leis sectoriais como tentativa de resposta à situação provocada pela pandemia, que em especial afectou a vida e o trabalho da Agricultura Familiar.
Mas não basta publicar leis, é necessário monitorar que medidas concretas foram criadas e a sua eficácia, pôr em prática as leis que ainda não saíram do papel, criar outras necessárias e atribuir-lhes os recursos necessários.
Insisto neste aspecto por considerar que sem cumprir substancialmente o 1º Pilar, “Criar um ambiente político propício para o fortalecimento da Agricultura Familiar”, os restantes 6 Pilares terão enormes dificuldades de atingir o objectivo.
Estamos na DÉCADA DA AGRICULTURA FAMILIAR e não na Década “para” a Agricultura Familiar.
A designação que a ONU adoptou, só tem sentido, só alcançará os seus objectivos com a participação activa dos Agricultores Familiares e das suas Organizações representativas na construção das medidas de política que lhes são destinadas, única forma de dar resposta às suas necessidades e reclamações.
Com o conhecimento de gerações e gerações, os camponeses sabem bem o que necessitam, que caminhos seguir, que objectivo atingir.
Persiste o estigma da “agricultura de subsistência” para desvalorizar a Agricultura Familiar, insiste-se em sistemas produtivos que já demonstraram como são prejudiciais para a alimentação das populações e para o planeta.
Entretanto, se reconhecida e apoiada, a Agricultura Familiar pode e deve ser a força impulsionadora da transformação dos sistemas alimentares em benefício dos povos.
Apesar dos êxitos alcançados com a Década, a fome aumentou, muitas explorações da Agricultura Familiar continuam a ser eliminadas.
As políticas de muitos governos continuam a apostar na desregulação dos mercados, o agronegócio transnacional da indústria e da distribuição concentra-se cada vez mais, intensifica-se a exploração da Agricultura Familiar e dos trabalhadores agrícolas.
As descobertas científicas e a evolução tecnológica não controlaram a fome nem a reduziram, mas têm criado crescentes dificuldades a quem, com as suas famílias, trabalha directamente a terra, enquanto o poder e os lucros das grandes companhias não param de aumentar.
Agora proclama-se que a “agricultura inteligente”, a digitalização, como que num passe de mágica, é a solução de todos os males, desde a fome, à redução da biodiversidade, ou ao esgotamento dos recursos naturais, às alterações climáticas.
Naturalmente somos a favor das descobertas, durante milénios os camponeses inventaram alfaias, descobriram novas técnicas para obterem melhores produções, rentabilizar o uso da terra.
Mais uma vez tudo depende do sentido das políticas e dos investimentos, se são inclusivos ou exclusivos da Agricultura Familiar, se favorecem a concentração ou se levam os novos conhecimentos a quem deles mais precisa para promover a soberania alimentar dos povos.
Se a Agricultura Familiar enfrenta enormes dificuldades, as suas organizações associativas, consequentemente, também as vivem.
Na Europa e na Ásia Central, na grande maioria dos países, com políticas viradas para o “produzir para exportar”, sem dar prioridade à alimentação das suas populações, apenas as organizações que representam os interesses dos grandes agricultores e empresas agrícolas e do agronegócio, são ouvidas e servidas pelos governos. Assim, influenciam as políticas públicas.
Pelo contrário, as organizações que representam os camponeses e os pequenos e médios agricultores são, na sua maioria, ignoradas, marginalizadas e mesmo perseguidas. Muito poucas beneficiam de financiamento público.
Muitas vezes, estas organizações nem sequer são convidadas a participar em reuniões onde as políticas agrícolas são decididas. Na melhor das hipóteses, são convidadas e ouvidas por cortesia, mas as suas propostas e reclamações não são realmente tidas em conta na aplicação das políticas públicas.
Isto tem de mudar, a Agricultura Familiar e as suas Organizações não podem ser meros receptores de ordens e orientações.
Este quadro mostra bem a importância da Década, o papel e a necessidade da ONU, dos seus organismos FAO (Organização para a Alimentação e a Agricultura) e FIDA (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola), a nível global, regional e nacional de, com as organizações da Agricultura Familiar, promover o diálogo institucional para alcançar os objectivos da Década.
Foi inicialmente definido alcançar os objectivos gerais da Década até 2028. Passados três anos e meio do seu início, com as experiências adquiridas, com as análises e debates deste Fórum Global, há que considerar como vamos caminhar, quais as prioridades, mesmo se é necessário prolongar a Década para recuperar a situação degradada em que vivemos e alcançar aquilo a que todos nos propusemos.
Desde a Via Campesina que representa e luta pelos direitos dos camponeses e outras pessoas do meio rural, estamos confiantes e determinados de que em diálogo, sem desânimos, com o compromisso das instituições e dos governos, alcançaremos os objectivos a que a Década da Agricultura Familiar se propôs, uma vida melhor nos campos, uma alimentação adequada para todos, um planeta melhor.
Intervenção no I Fórum Global da Década das Nações Unidas para a Agricultura Familiar (UNDFF), que decorreu entre 19 e 22 de Setembro. Alfredo Campos, da Direcção da CNA, é membro do Comité Coordenador Internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) para a Década da Agricultura Familiar 2019-2028 em representação da Coordenadora Europeia Via Campesina (CEVC).
Artigo publicado originalmente em CNA.