Há muitos crimes violentos na África do Sul. Não se trata de um genocídio contra os agricultores brancos.
As alegações de genocídio podem, por vezes, ser difíceis de julgar. Esta afirmação é fácil. Os factos mostram que o genocídio que Donald Trump sugere que possa estar a acontecer não está a acontecer, e que o crime contra agricultores brancos na África do Sul representa uma pequena fração do crime total do país.
Os dados oficiais mais recentes da África do Sul mostram que o país teve 19.696 assassinatos de abril de 2024 a dezembro de 2024, e que a vítima em apenas 36 desses assassinatos, cerca de 0,2%, estava ligada a quintas ou explorações agrícolas mais pequenas.
Para além disso, apenas sete das 36 vítimas eram agricultores. (A África do Sul também tem agricultores negros; os dados oficiais não estão desagregados por raça). As outras 29 vítimas incluíam empregados agrícolas, que tendem a ser negros.
Os dados de grupos que representam os agricultores sul-africanos também mostram que os assassinatos nas explorações agrícolas são às dezenas por ano, uma percentagem minúscula do total do país.
A África do Sul não satisfaz a definição de “genocídio”
De acordo com a definição das Nações Unidas, o genocídio requer atos, como o homicídio e lesões corporais ou mentais graves, “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal”. Não há provas de que a África do Sul, cujo ministro da Agricultura é branco, tenha feito ou supervisionado qualquer esforço nesse sentido.
A alegação de um genocídio contra os agricultores brancos sul-africanos tem sido promovida há anos por grupos nacionalistas brancos. Trump, que acelerou o processamento de sul-africanos brancos como refugiados, mesmo mantendo suspensa toda a reinstalação de refugiados nos EUA, levantou a noção de um genocídio na semana passada e repetiu-a durante uma controversa reunião na quarta-feira com o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, em frente às câmaras na Casa Branca.
Trump referiu a certa altura: “Aceitamos (refugiados) de muitos locais se sentirmos que há perseguição ou genocídio a acontecer. E tivemos muitas pessoas, devo dizer-lhe, Sr. Presidente. Tivemos um número tremendo de pessoas, especialmente desde que viram isto, geralmente são agricultores brancos, e estão a fugir da África do Sul”.
Durante a reunião, Trump exibiu impressões do que disse serem relatórios sobre a morte de sul-africanos brancos, para além de fazer com que Ramaphosa assistisse a uma montagem de vídeo que incluía um clip de uma manifestação com cruzes brancas que simbolizavam os agricultores sul-africanos que foram mortos.
Trump identificou-as erradamente como “locais de enterro”, evocando a imagem de uma vala comum, em vez de símbolos. E, embora Trump tenha dito a um repórter que “não tomei uma decisão” sobre se está a ocorrer genocídio, não explicou que os homicídios de agricultores brancos são uma percentagem minúscula do total de homicídios na África do Sul.
Roubos são vistos como o motivo de muitos ataques a agricultores
De 1948 a 1994, a África do Sul foi governada sob o sistema segregacionista do apartheid, que subjugava a maioria negra (que constituía cerca de 81% da população de 2022) e privilegiava a minoria branca (que constituía cerca de 7% da população de 2022). Nas eleições democráticas de 1994 em diante, o país elegeu o Congresso Nacional Africano, liderado por negros e atualmente presidido por Ramaphosa.
Mesmo quando agricultores brancos foram mortos na África do Sul, muitas vezes não ficou claro que o crime tenha sido motivado pela raça. Em 2003, uma comissão governamental sul-africana concluiu que o principal motivo subjacente à maioria dos ataques a explorações agrícolas era o roubo. Este ano, os peritos sul-africanos chegaram a conclusões semelhantes.
“O isolamento das explorações agrícolas torna os agricultores particularmente vulneráveis ao crime, mas isto é uma função da geografia e das condições socioeconómicas e não de intenções políticas ou raciais”, defendeu Anthony Kaziboni, sociólogo político e crítico do Centro para o Desenvolvimento Social em África da Universidade de Joanesburgo, ao FactCheck.org num artigo publicado na semana passada.
“Tendo em conta a definição da ONU, descrever as mortes nas explorações agrícolas como genocídio é uma descaraterização grosseira”, afirmou Kaziboni. “Isso não diminui a gravidade desses crimes, nem a necessidade de intervenções específicas de segurança rural. Mas é essencial abordar esses tópicos com clareza e cuidado, com base em evidências e contextos confiáveis.”
Alguns agricultores brancos disseram este ano que os agricultores são frequentemente vitimados porque são alvos vulneráveis e que, o que está a acontecer, não é “genocídio”. E o próprio primeiro governo de Trump destacou dúvidas sobre a narrativa do “genocídio”.
Em 2020, no final do primeiro mandato de Trump, o Departamento de Estado divulgou um relatório sobre os direitos humanos na África do Sul, no qual dizia: “Alguns grupos de defesa afirmaram que os agricultores brancos foram racialmente visados por roubos, invasões de casas e assassinatos, enquanto muitos observadores atribuíram os incidentes à alta e crescente taxa de criminalidade do país”. O Departamento de Estado continuou a apresentar argumentos contra a noção de ataques a quintas motivados por questões raciais. “De acordo com o Instituto de Estudos de Segurança, ‘os ataques e assassinatos em quintas aumentaram nos últimos anos, em linha com a tendência geral de crescimento dos crimes graves e violentos na África do Sul’”.
O Departamento de Estado observou então que, de acordo com as estatísticas oficiais sul-africanas para o período 2018-2019, “os assassinatos em fazendas representaram apenas 0,2% de todos os assassinatos no país (47 de 21.022)” – a mesma percentagem que nos dados dos últimos três anos.
Trump sobre a nova lei de expropriação da África do Sul
Durante a reunião de quarta-feira, Trump tentou reforçar o seu caso fazendo uma referência aparente a uma lei de expropriação que Ramaphosa assinou este ano, em parte para ajudar a remediar a desigualdade racial na propriedade da terra que ainda assola a África do Sul três décadas após o fim do apartheid. (Um relatório de 2017 concluiu que os brancos detinham 72% das quintas e explorações agrícolas do país por proprietários individuais). A nova lei foi atacada pelo aliado de Trump, Elon Musk, que é sul-africano.
A lei exige que o governo forneça uma indemnização “justa e equitativa”, na maioria dos casos, a um proprietário cuja terra seja expropriada. Mas também permite apreensões sem compensação em certos casos – de proprietários de qualquer raça – quando a apreensão é considerada “de interesse público” e certas condições são cumpridas, como a terra estar abandonada, a terra não ser utilizada porque o principal objetivo do proprietário é beneficiar da sua valorização, ou a terra ter um valor de mercado igual ou inferior aos investimentos ou subsídios do governo nela.
“Vocês permitem que eles tomem terras. E depois, quando eles tomam a terra, matam o agricultor branco”, sublinhou Trump a Ramaphosa.
O presidente norte-americano estava a contar ficção mais uma vez. Em meados de maio, a Bloomberg noticiou que nenhuma terra tinha sido confiscada ao abrigo da nova lei de expropriação, e Trump não forneceu provas da sua afirmação generalizada de que os agricultores brancos são assassinados depois de as suas terras serem confiscadas.
Em fevereiro, depois de a administração Trump ter citado a lei das expropriações numa ordem executiva que congelava a ajuda à África do Sul, o diretor executivo de uma associação comercial de agricultores sul-africanos afirmou numa declaração: “Para ser claro, não houve apreensões ou confiscos de propriedade privada. Também não foi expropriada nenhuma terra sem indemnização. Foram tratados casos isolados de usurpação de terras e de invasão de propriedade”. A declaração refere que, embora a lei permita a expropriação sem indemnização, “tal não significa que a expropriação sem indemnização seja inevitável. O princípio da compensação justa e equitativa permanece intacto, exigindo uma avaliação cuidadosa de todos os fatores relevantes”.
*Larry Madowo contribuiu para este artigo