Henrique Pereira dos Santos

Fundão e Odemira – Henrique Pereira dos Santos

No Sábado há noite, no Expresso da Meia Noite, na SIC, quando fiz uma tentativa de usar o argumento (que correu mal do ponto de vista de comunicação) de que quando temos economia temos problemas e soluções, e quando não temos economia, ficamos só com os problemas, dei o exemplo de Odemira.

O que pretendia era dar o exemplo de Odemira e do Alojamento Local (de que não cheguei a falar) como exemplos em que actividades lucrativas tinham contrariado tendências persistentes que frequentemente se diz que só poderiam ser contrariadas pela intervenção directa do Estado (longos anos andou o Estado com programas de recuperação dos bairros históricos para o alojamento local resolver num instante grande parte do problema).

Estupidamente, da minha parte, não percebi que isso rapidamente seria afogado na demagogia do costume, sobre as crianças que não podem ir à escola (nem sei a que dizia respeito essa conversa das crianças que não podem ir à escola) e em contra-exemplos da treta, como contrapor o bom exemplo do Fundão ao mau exemplo de Odemira.

Ir buscar o bom exemplo do Fundão para contrapor ao mau exemplo de Odemira é extraordinário porque os modelos de negócio são semelhantes: produtos de elevada diferenciação que são potenciados por gestão intensiva do território, com grandes introduções de energia (como na preparação do terreno dos cerejais), com diminuição da diversidade (utilização de muito poucas espécies e técnicas de controlo das espécies que possam diminuir a produção final), utilização de mão de obra pouco qualificada proveniente de localizações longínquas e, na medida do possível, regadio.

O resultado final no Fundão é a diminuição de população em cerca de 2500 pessoas na última década, estando o número de habitantes ao nível de meados do século XIX, e em Odemira (por isso usei o exemplo), estamos perante um dos poucos, e o único não urbano (se não me engano, não fui verificar agora se há mais um ou dois mas tenho ideia que não), em que a população na última década cresceu.

Cresceu apenas porque os efeitos das alterações tecnológicas, de gestão e de mercados dos produtos base das duas economias criam mais valor no caso de Odemira que no caso do Fundão, e portanto atingiram dimensão suficiente para contrariar as tendências profundas de perda de valor da generalidade das actividades de produção agrícola, florestal e pecuária, ao contrário do que acontece no Fundão, em que essa dimensão apenas permitiu atenuar as tendências profundas de perda de valor global das actividades que gerem território.

O extraordinário não é que a discussão tenha tomado o rumo que lhe imprimiu a demagogia (já tenho idade suficiente para ter aprendido a antecipar este tipo de situações, mas sou socialmente muito incompetente), o extraordinário é a facilidade com que a mera racionalidade pode ser retirada de uma discussão com base na mera omissão de dados concretos e na invocação de argumentos de elevado conteúdo emocional, sem nenhum valor para o que está em discussão, como a conversa fantasiosa das crianças que não podem ir à escola.

Que isto seja permanentemente feito pelas elites mais qualificadas do país para evitar que os factos influenciem as suas ideias, parece-me uma das boas razões para continuarmos a desenhar políticas públicas que partem do princípio de que há acções de longo prazo que podem ser sustentáveis sem uma econimia que gere os recursos para as financiar.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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