Governo português distingue a fadista Maria Alcina, natura de Castro Daire

A fadista portuguesa Maria Alcina, residente no Rio de Janeiro há mais de 70 anos, foi condecorada pelo Governo português, nas instalações do Real Gabinete Português de Leitura, no centro da cidade, com uma das mais altas distinções do país. Alcina recebeu a “Medalha de mérito das Comunidades Portuguesas”, neste caso, “Grau Ouro”, entregue pelo secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, Emídio Sousa, após proposta do Consulado-Geral de Portugal no Rio de Janeiro. O evento contou com a presença do embaixador de Portugal no Brasil, Luís Faro Ramos, e da Cônsul-Geral de Portugal no Rio de Janeiro, Gabriela Soares de Albergaria, entre outras autoridades.

Em declarações à nossa reportagem, Maria Alcina afirmou que, durante a homenagem, que teve lugar dia 12 de julho, “sentiu muita gratidão pelo esforço da embaixadora Gabriela de Albergaria, que fez de tudo para que esse momento acontecesse”, mas também “um agradecimento grande ao Governo de Portugal por decidir me homenagear”.

“Senti-me de novo uma portuguesa ilustre, importante. Fiquei muito feliz por ter muitos amigos ao meu lado e pelas mensagens que recebi. Há muita gente me envolvendo em carinho”, disse Alcina, que, apesar de ter recebido diversas homenagens durante a carreira, reconhece que esta medalha tem um espaço de destaque no seu currículo, a partir de agora.

“Esta homenagem tem um peso especial, pois envolve o nosso país, Portugal. A partir de uma certa idade, valorizamos ainda mais as nossas conquistas e este é o caso agora. Senti-me mais portuguesa ainda”, revelou a fadista.

“Vivo no Brasil desde 1953 divulgando Portugal e amando o Brasil. O ponto mais importante da minha carreira foi, certamente, o lançamento do livro com a minha história em 2016, quando pude recordar muitos pontos da minha caminhada pessoal e profissional”, disse, emocionada.

Para Emídio Sousa, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, a fadista mereceu esse reconhecimento porque “foi uma pessoa que se distinguiu na promoção da cultura portuguesa no Brasil, através do fado, em especial no Rio de Janeiro”, tendo sido “considerada a imperatriz do fado no Brasil”, onde “criou uma das casas de fado de maior sucesso no país, “A desgarrada””.

Luís Faro Ramos, embaixador de Portugal no Brasil, considerou a homenagem “muito merecida”.

“Do meu ponto de vista é uma homenagem muito merecida porque é um reconhecimento de uma carreira de uma pessoa especial que, durante muitos anos, cantou e encantou muita gente no Rio de Janeiro e inclusive teve uma casa de fado no Rio de Janeiro. Agora, que tem já cerca de 80 anos, foi objeto de uma justa homenagem por parte das autoridades portuguesas. Para mim, foi uma grande satisfação ter podido testemunhar no Rio de Janeiro, ainda por cima no lindíssimo Real Gabinete Português de Leitura, a entrega desta homenagem à fadista”, disse Faro Ramos.

Na opinião de Gabriela Soares de Albergaria, cônsul-geral de Portugal no Rio de Janeiro, autora da proposta de homenagem à fadista, a entrega da medalha foi um momento marcante para a comunidade luso-brasileira.

“Foi com muita alegria e satisfação que vi favoravelmente decidida a proposta apresentada por este Consulado-Geral de Portugal no Rio de Janeiro de agraciar a fadista Maria Alcina pelo seu percurso pessoal, profissional e artístico. Com efeito, o reconhecimento do mérito artístico, humano e pessoal desta viseense que, em terras de Vera Cruz, se destacou pela excelência da sua voz e grandeza da sua alma tinham de ser – como foram – reconhecidos oficialmente pelo Governo português. Em boa hora, decidiu-se atribuir à Maria Alcina a Medalha de Mérito – no grau Ouro – das Comunidades Portuguesas pelo seu percurso de vida artística, tendo a cerimónia de imposição da Medalha ocorrido no local mais emblemático da comunidade e da cultura portuguesa no Rio, o Real Gabinete Português de Leitura”, ressaltou esta responsável.

José Cesário, deputado eleito pela emigração pelo círculo de Fora da Europa, conhece de perto a carreira da fadista e referiu o seu empenho em reconhecer Portugal como a sua terra e o Brasil como a sua casa.

“É uma mulher admirável, que nunca esquece as suas raízes e o seu País. É o retrato da comunidade luso-brasileira: portuguesa e brasileira, castrense e carioca, em simultâneo. Foi e é uma das mais sonantes vozes do nosso Fado nas terras de Vera Cruz. Devo-lhe amizade e atenções, que nunca esquecerei. Desejo-lhe uma longa viva repleta de alegrias”, mencionou Cesário.

A notícia da homenagem mereceu também a atenção de Flávio Martins, ex-deputado à Assembleia da República portuguesa e atual presidente do Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Portuguesas (CP-CCP).

“A minha amiga e “Imperatriz do Fado”, tratamento dado por Carlos do Carmo, Maria Alcina nasceu em Castro D’Aire (Viseu), vila que ostenta uma avenida em sua homenagem. Iniciou a sua carreira artística na década de 1950, após ser descoberta por Edson Santana, durante um programa de rádio. Lançou considerável discografia, participou em diversos programas de rádio e TV, e teve um livro-reportagem dedicado à sua trajetória: Maria Alcina – a força infinita do Fado! Peça de autoria do jornalista Ígor Lopes (2016). Em sete décadas de carreira construiu espaços de convivência cultural, conquistou respeito em importantes palcos e se mantém ativa e relevante. O seu recém espetáculo no Teatro Brigitte Blair, no Rio, demonstrou isso. Mas como não lembrar do memorável espetáculo no Casino Estoril em 1974 ou de ter sido a primeira mulher a iniciar o desfile da Unidos da Tijuca, em 2002, cantando fado na Marquês de Sapucaí ou, ainda, do tempo em que dirigiu o restaurante “A Desgarrada”, em Ipanema, ponto de referência da cultura luso-brasileira? Por isso, tenho enorme orgulho em ser amigo dessa musa da canção e de poder assistir, mesmo que à distância, a justa e merecida entrega da medalha de mérito das Comunidades na semana passada. Parabéns, Maria Alcina, os seus fãs a reverenciam”, sublinhou Flávio Martins, que esteve ausente da cerimónia em virtude da agenda oficial do CCP em Lisboa.

Currículo luso-brasileiro no “tom certo”

Natural de Cetos, concelho de Castro Daire, no distrito de Viseu, Portugal, Maria Alcina nasceu a 12 de março de 1939, é hoje um ícone vivo da música portuguesa na diáspora, com mais de seis décadas de carreira em terras brasileiras.

Radicada no Rio de Janeiro desde 1953, onde chegou aos 14 anos juntamente com a sua mãe, foi pioneira no fado no Brasil, sendo reconhecida como a voz que fez renascer o género em solo sul-americano. Uma mulher de palco, de alma fadista, de presença firme e de coração profundamente português. No Rio de Janeiro, começou a cantar fado e fez do estilo musical mais característico de Portugal uma autêntica forma de vida.

Durante a sua vida artística, Alcina atuou com grandes nomes do fado, como Amália Rodrigues e Carlos do Carmo. Cantou em casas no eixo Rio-São Paulo e teve a sua própria casa de fados, “A Desgarrada”, na zona Sul carioca. Maria Alcina é e foi presença frequente em programas de televisão, radiofónicos e chegou a ter o seu próprio programa de rádio. Lançou LPs, compactos, dois CDs, DVD e foi protagonista, em 2015, do livro-reportagem “Maria Alcina, a força infinita do Fado”, de autoria do jornalista luso-brasileiro Ígor Lopes. Foi também uma das quatro personagens destacadas na obra “Luso-Brasilidade Musical – A influência da música na ligação entre Brasil e Portugal”, do mesmo autor, um livro editado pela Funarte.

A fadista participou também em peças de teatro e foi personagem em documentários premiados pelos críticos. É detentora de diversos prémios, distinções e comendas. Foi homenageada recentemente pela Academia Luso-Brasileira de Letras e pela Academia de Filosofia e Ciências Humanísticas Lucentina. Participou em telenovelas, minisséries e assinou a banda sonora de muitos trabalhos televisivos.

Apaixonada pelo Brasil, Alcina vive no Rio de Janeiro. É mãe de três filhas: Ângela, Alcinele e Eliane. É viúva do empresário português João Duarte, falecido em 2014, com quem compartilhou um segundo casamento.

No universo luso-brasileiro, é conhecida por ser “uma mulher de garra e voz visceral”. A sua história é repleta de desafios, como o início difícil, incluindo episódios de violência doméstica no seu primeiro casamento. Cantar foi, num primeiro momento, uma imposição – mais tarde, tornou-se “libertação”.

Acostumada aos holofotes internacionais, Alcina prefere hoje a tranquilidade da sua casa no Méier, no Rio de Janeiro. É amante de animais, jardineira dedicada, fiel aos rituais de meditação e oração antes de cada espetáculo. É vaidosa, exigente com o som, a iluminação e o respeito pelo palco. Para ela, “quem gosta de fado respeita o artista”. Atua em diversas atividades sociais, com o seu canto, apoiando os portugueses, e não só, com mais dificuldades no Brasil, “emprestando” gratuitamente a sua arte.

Foi reconhecida “Rainha da Desgarrada”, eleita pelo Programa de TV “Domingo em Portugal”, em dupla com António Campos (1970); foi presença habitual nas principais casas regionais portuguesas no Brasil; apresentou-se em diversos países e estados brasileiros, além, claro, de Portugal.

Em 1993, foi inaugurada a Avenida Maria Alcina Fadista, em Castro Daire, a sua terra natal. Em 2002, tornou-se a primeira fadista a pisar a Marquês de Sapucaí, durante o desfile da Unidos da Tijuca, levando o fado à passarela do samba. Foi a primeira mulher a dar o famoso “grito de saída” da escola de samba Unidos da Tijuca, em ritmo de fado, na Marquês de Sapucaí, palco do carnaval carioca. 

Em 2015, foi homenageada no Festival de Fado da Cidade das Artes, no Rio, onde Carlos do Carmo a consagrou “Imperatriz do Fado”, pelo seu esforço em dignificar a alma portuguesa através da música em solo brasileiro.

“Ao som do Fado, vim para o Brasil com muita amargura no coração. Mas encontrei, na música, a redenção e o amor dos dois países que me pertencem: Portugal e Brasil”, finalizou Maria Alcina.

O artigo foi publicado originalmente em Gazeta Rural.


Publicado

em

,

por

Etiquetas: