Miguel Freitas

Impactos no setor alimentar: para onde nos leva a covid-19? – Miguel Freitas

Se isto não for feito, quando o tsunami passar, estes serão uma parte dos perdedores. Com um forte impacto social em muitas das nossas áreas rurais.

Na altura em que o mundo parou, agarrado aos gráficos e às mais diversas previsões dos impactos na saúde e nas economias a nível global, em que o isolamento nos é imposto de forma brutal por uma pandemia virulenta e vamos convivendo com os números da morte com estranha naturalidade, percebemos como somos tão frágeis e como toda a construção social assenta em relações delicadíssimas. A incerteza ganha todo o espaço da nossa vida. Todos desejamos, mas ninguém acredita num final feliz.

Procuro, entretanto, uma outra ótica para observar e outra lógica para abordar o momento. Procuro ser racional. Não me deixar dissolver pelo imaginário, mas tentar perceber a realidade. Faço-o na esfera do que sei, do que conheço, do que consigo analisar. Porque se algo está para mudar, neste movimento em que tudo se transforma, é preciso perceber para onde nos leva a covid-19.

Faço a abordagem a partir do setor agroalimentar. Desde logo, com um enorme reconhecimento. Se há setor que merece neste momento a nossa atenção, além, claro, da saúde, que lida com enorme sobrecarga e face-a-face com o inimigo, é o setor agroalimentar em toda a sua cadeia de valor. Uso apropriadamente a noção de valor, pois muitas vezes esta noção encerra apenas as relações de negócio. O valor a que me refiro vai muito para além desse entendimento. Trabalhar hoje, no campo, nas unidades de transformação e embalagem, na logística e nos transportes, nos espaços de venda, para garantir o abastecimento alimentar, quando toda a pressão social vai no sentido do isolamento e do encerramento, é um ato de coragem física. Este é o tempo de fazer saber a toda a sociedade o quanto importante, imprescindível e insubstituível é o setor da agricultura e alimentação.

Mas este é um setor extraordinariamente assimétrico. Poucas unidades fornecem as grandes superfícies. Essas continuam a funcionar, com maior ou menor capacidade. Impõe-se rigorosos planos de contingência para proteção dos que trabalham, há falhas de mão-de-obra, ajustam-se metodologias, alteram-se modelos, nos processos, nos produtos e nas embalagens. Aumentam os custos de transporte e de logística, particularmente para as empresas exportadoras. No curto prazo, a procura vai diminuir. Pelo encerramento da restauração e da hotelaria. Espero que, com isso, não haja a tentação de redução de preços ao produtor. Os supermercados “enchem”, embora pareçam mais vazios. Serão os grandes ganhadores.

Há, depois, dezenas de milhares de produtores, pequenos produtores da agricultura familiar, que vendem os seus produtos em mercados de proximidade. Colhem todas as semanas, para venda de produto fresco. Não têm rede de frio. Não têm organização para fazer chegar os produtos aos seus clientes habituais, agora em casa. O contacto é pessoal. Está, em geral, agora interrompido.

Perante isto, percebe-se que é preciso respostas ajustadas a diferentes realidades. Para as empresas agrícolas e agroalimentares, é preciso medidas de liquidez e estímulo ao investimento. Medidas de liquidez, como o adiantamento de 80% a todos os pedidos de pagamento que entraram no IFAP, como o Governo já decidiu, é essencial. Desde que seja feito com rapidez. O deferimento dos pagamentos à Segurança Social e Fisco, neste caso, é uma boa ajuda. Creio que será crucial um pacote robusto de apoio ao investimento. Está pronta junto da banca a linha de apoio do Banco Europeu de Investimento, com garantia do Estado. Para as empresas mais competitivas e capazes, este é um bom instrumento. É para esses que foi pensada e operacionalizada. Mas não chega. Muito menos se ajusta à maioria dos agricultores portugueses.

Para a maioria dos pequenos agricultores, para o qual em 2018 se criou o “Estatuto da Agricultura Familiar”, a sua efetiva concretização é inadiável. Para estes pequenos agricultores estavam previstos regimes específicos de segurança social e fiscalidade, sendo importante equacionar agora uma isenção de pagamentos. Mas creio que a mais inovadora das medidas seria lançar um programa simples, desburocratizado e de rápida resposta para a organização de circuitos curtos de comercialização, que ligue produtores a consumidores. Com o apoio das autarquias e das associações de desenvolvimento local. Estas são respostas imediatas para modelos com futuro. Há mecanismos e instrumentos específicos para isso no PDR2020. Mas, também, no Sistema de Incentivos para Ações Coletivas dos programas regionais. Isto não pode esperar. Muito menos submeter-se ao ritmo do que está programado. Em período de exceção é preciso alterar prioridades.

Mas a intervenção deve colocar-se, ainda, a nível europeu. Desde logo, dever-se-ia solicitar a Bruxelas a derrogação dos compromissos que impendem sobre os agricultores. E clarificar o período de transição, para que se possa desde já começar a aprovar projetos com dinheiro do próximo período de programação. Isto é possível e desejável. Se ficamos à espera que as decisões venham de lá, perdemos tempo. Neste caso, demasiado precioso.

Se isto não for feito, quando o tsunami passar, estes serão uma parte dos perdedores. Com um forte impacto social em muitas das nossas áreas rurais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Professor da Universidade do Algarve


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