A gestão dos incêndios florestais em Portugal revela um défice estrutural que se repete com desconcertante regularidade: as chamas regressam anualmente e a surpresa pública mantém-se, como se a previsibilidade do fenómeno não merecesse um esforço coletivo de aprendizagem.
Não se trata de negar a aleatoriedade de certos eventos; trata-se de reconhecer que a incapacidade de articular prevenção, investigação e resposta num sistema coerente e resiliente transforma fenómenos previsíveis em catástrofes evitáveis. O ónus não cabe apenas a este ou àquele político. A culpa é plural, antiga e distribuída e sempre foi assim, é por isso que nada muda.
É uma amálgama de vicissitudes, comecemos pela figura do guarda florestal, que é central nesta equação e, apesar de persistir formalmente no ordenamento, sofreu nos últimos anos mudanças institucionais e funcionais que têm impacto prático sobre a prevenção e a investigação. Em muitas áreas do continente a atividade de fiscalização florestal integra carreiras afetas à Guarda Nacional Republicana com atribuições de fiscalização, prevenção e inquérito de ilícitos florestais. A consequência imediata é heterogeneidade estatutária e operacional, ou seja, poderes distintos, percursos profissionais distintos, distribuição desigual de efetivos e meios. Esta fragmentação institucional tem efeitos palpáveis sobre a gestão do risco. Menos guardas, carreiras precárias e descontinuidade de meios significam menos patrulhamento, menor deteção precoce e diminuição da eficácia na aplicação de medidas administrativas e penais.
Em suma, a organização da guarda florestal e os recursos dedicados à sua missão provam-se insuficientes para responder eficazmente às exigências de prevenção e fiscalização. É nesse contexto que surgem os sistemas de comunicações concebidos para assegurar interoperabilidade entre proteção civil, forças de segurança e equipas de combate. Entre eles destaca-se o famoso SIRESP, cuja ambição técnica é inegável, mas cuja eficácia prática se mostra muitas vezes dúbia.
Na prática, episódios de falibilidade técnica, lacunas de cobertura e contratos desastrosos que não preveem redundâncias tornam estas infraestruturas vulneráveis nos momentos críticos em que deveriam ser mais robustas. Uma rede projetada para gerir o choque não pode, quando o choque ocorre, transformar-se num ponto único de colapso.
Por mais que pareça, não estou a brincar nem é piada. Existe uma cláusula que exime a operadora (SIRESP) de responsabilidade em caso de falhas durante situações de força maior, justamente aquelas em que o sistema deveria ser mais robusto, como incêndios ou outras calamidades. Sim, a Cláusula 17, sob a epígrafe “Força Maior”, considera como tais a guerra, o terrorismo, inundações graves, ciclones, terramotos ou outros cataclismos naturais, estabelecendo que, nesses cenários, as falhas não podem ser imputadas à operadora. Esta disposição tem sido severamente criticada por especialistas em parcerias público-privadas, por subverter a finalidade essencial do SIRESP que é assegurar comunicações em contexto de emergência. O objetivo do sistema é que ele funcione exatamente em caso de calamidade, o que torna incompreensível, para não dizer kafkiano, que incêndios (previsíveis e recorrentes) figurem entre as situações que desoneram responsabilidades.
Assim, é imperioso rever os modelos contratuais, introduzir obrigações de manutenção preventiva e testes de carga em cenários de pico, e instaurar cláusulas de penalização por falha operacional que assegurem responsabilização real.
Não obstante, as causas da disfuncionalidade sistémica são múltiplas e convergentes. A governação está fragmentada entre ministérios, câmaras municipais, ICNF, proteção civil e forças policiais, o que gera ambiguidades e sobreposições operacionais. Os mecanismos de financiamento e manutenção, frequentemente desenhados de forma pontual e à rasca ou apoiados em parcerias público-privadas sem cláusulas de contingência rigorosas, não garantem continuidade nem responsabilização. A prevenção do risco, nomeadamente a gestão contínua de combustíveis, a limpeza de faixas, a recuperação de caminhos florestais e a valorização económica da biomassa, continua a ser tratada como operação episódica sujeita a ciclos eleitorais (uns não fazem, outros criticam). Acresce a insuficiência de meios técnico-científicos para investigação criminal, como a perícia forense no terreno, a recolha sistemática de vestígios e brigadas especializadas em criminalística de incêndios são ainda insuficientes para assegurar celeridade e eficácia probatória. Por fim, as alterações climáticas prolongam a janela de risco e intensifica os fenómenos; o quadro operativo não evoluiu em escala e rapidez compatíveis com essa nova realidade.
No plano penal, o ordenamento prevê sanções severas para o incêndio doloso, com molduras que podem traduzir-se em longas penas de privação de liberdade quando estão em causa vidas humanas ou danos de grande envergadura. A eficácia dissuasora destas penas depende, porém, da certeza e da celeridade da sua aplicação. Sem investigação célere e elevada probabilidade de responsabilização, a pena permanece mera proclamação punitiva. A discussão pública em torno da prisão preventiva para este tipo de situações tem de ser encarada com rigor técnico e constitucional, ou continuará a pairar sobre todos a ideia de impunidade, quando vemos na comunicação social que “andam todos em liberdade”.
A solução pragmática e constitucionalmente aceitável passa por uma reforma processual que regulamente de forma específica os incêndios florestais dolosos de gravidade excecional. Um regime que facilite a aplicação de medidas cautelares mais gravosas quando concorram cumulativamente indícios substanciais de autoria, perigo elevado de reiteração, por exemplo quando existam indícios de organização criminosa, e risco concreto e imediato para a vida de terceiros. Esse regime deverá incorporar salvaguardas rigorosas como prazos reduzidos para revisão judicial obrigatória, audição célere do arguido, ordem de prioridade para perícias independentes com cronogramas exequíveis e controlos periódicos pelo tribunal que evitem deriva liberticida. Assim se concilia a proteção coletiva com as garantias fundamentais do Estado de Direito.
Para além das medidas processuais e sancionatórias, são indispensáveis políticas públicas que ataquem as causas estruturais do problema:
- Harmonização estatutária e estabilização das carreiras de guarda florestal, com planos de recrutamento sustentado, condições contratuais que retenham pessoal qualificado e percursos de progressão claros.
- Dotação tecnológica e de comunicações dotadas de redundâncias integradas no sistema nacional de decisão, interoperáveis com as autoridades regionais e com contratos que vinculem penalizações a falhas operacionais.
- Reforço da capacidade forense e de investigação criminal, com unidades especializadas capazes de atuar com rapidez e rigor técnico.
- Criação de um quadro de incentivos fiscais e programas que tornem lucrativa e contínua a gestão de combustíveis para proprietários rurais, transformando a prevenção numa atividade economicamente sustentável.
- Finalmente, campanhas pedagógicas e de cidadania de longo prazo que consolidem uma cultura de prevenção, lembrando que a segurança não se decreta, mas cultiva-se, e que a limpeza dos terrenos não serve só para “fugir à multa”.
Infelizmente, e de forma empírica, creio que continuaremos a viver esta cruel realidade que pouco mais serve do que arma política de arremesso sem solução à vista. Cada vez há mais fogos, e cada vez mais severos. Repito que isso obriga a respostas de maior ambição, não só em meios de supressão, mas, sobretudo, em prevenção estruturada e investigação célere. Nada disto será eficaz se as medidas punitivas se limitarem a proclamações esdrúxulas, desconectadas de meios institucionais e técnicos.
Ao mesmo tempo, perde-se património, mas acima de tudo, perdem-se vidas. A complacência é inaceitável; a impunidade e a desídia são combustíveis tão perigosos quanto o mato seco. Se as instituições pretendem deixar de ser correspondentes da surpresa anual, terão de conjugar leis calibradas, investigação célere, infraestruturas resilientes e profissionais valorizados. Só assim a prudência substituirá a surpresa e a palavra prevenção deixará de ser somente retórica.
Ironia amarga… A tradição de agosto em Portugal não são as festas populares, mas a surpresa institucional perante incêndios previsíveis.