Ana Margarida Fortes trabalha com a videira e o tomateiro com o objetivo de melhorar a qualidade dos frutos e aumentar a sua produtividade. No Laboratório de Genómica Funcional de Frutos e Biotecnologia utiliza a ferramenta de edição do genoma CRISPR-Cas9 para desacelerar a maturação do tomate e, deste modo, evitar as perdas pós-colheita. Para esta investigadora, a biotecnologia é uma importante ferramenta para assegurar a segurança alimentar.
Lidera a equipa de investigadores do Laboratório de Genómica Funcional de Frutos e Biotecnologia, onde se faz melhoramento vegetal de espécies frutícolas. Com que plantas trabalha?
Temos estado a trabalhar maioritariamente com a videira e o tomateiro, porque tanto a uva como o tomate são modelos muito usados na investigação de frutos. Apesar de terem algumas diferenças – um é climatérico e o outro é não climatérico -, são muito usados como modelos de investigação para tentar perceber o controlo molecular e metabólico do amadurecimento, bem como outros aspetos. O objetivo do nosso trabalho é melhorar a qualidade e aumentar a produtividade, quer melhorarando características organoléticas, quer tornando estas espécies mais resilientes a fungos patogénicos e à seca.
É uma abordagem para mitigar os efeitos das alterações climáticas?
É. Vamos ter problemas com o aumento da temperatura global e a biotecnologia, na verdade, vai ser uma grande ajuda no sentido de assegurar a segurança alimentar.
Que projetos está a desenvolver neste momento?
As nossas abordagens visam todas a sustentabilidade da produção, melhor qualidade e melhor resiliência a fatores bióticos e abióticos, no entanto, nem todas envolvem engenharia genética. Por exemplo, estamos agora envolvidos num projeto europeu em que o objetivo é estudar o microbioma do solo e tentar perceber como é que ele é afetado por plantas em situação de seca e infeções fúngicas. Quando falo de microbioma refiro-me ao conjunto de fungos e bactérias, que neste caso podem até ser benéficos. Em última análise, o que se pretende é caracterizar o que se chama de microbioma funcional. Nós poderemos fornecer este microbioma funcional ao solo ou às plantas e, desta forma, induzir-lhes um pouco de resiliência à seca e a fungos num contexto de abordagens multidisciplinares. Esta abordagem não envolve engenharia genética.
Também estivemos a fazer a caracterização de como é que as uvas, quando infetadas por fungos como o oídio ou o Botrytis cinerea, sofriam uma alteração na expressão dos genes. Aqui usamos abordagens ómicas (big data), nomeadamente a transcriptómica, a metabolómica para identificar e quantificar os metabólitos que são produzidos e perceber como é que castas mais resilientes a fungos se comportam, comparando-as com castas mais suscetíveis no sentido de identificar genes que possam estar envolvidos nessa resiliência e que depois possam ser usados em programas de melhoramento vegetal.
Utiliza edição do genoma?
Sim, usamos o CRISPR-Cas9.
Quais são os resultados que pretende obter?
Neste caso, começámos com uma abordagem de um gene. Mutámos um gene que estava putativamente envolvido no amadurecimento, no sentido de desacelerar a maturação do tomate devido às perdas pós-colheita. As perdas que ocorrem depois da colheita é um problema conhecido, não só no tomate como também noutros frutos. E nós pensámos que se conseguíssemos desacelerar um pouco o amadurecimento naquele período entre a colheita e a comercialização, os frutos poderiam chegar ao consumidor em melhores condições.
E conseguiu atrasar o amadurecimento?
Sim, já conseguimos algum desaceleramento da maturação. O que ainda não avaliamos é o sabor e a qualidade do aroma. Estamos a trabalhar com uma variedade de tomate que é comercializada, a Moneymaker. As plantas neste momento já não são transgénicas, são plantas estabilizadas, ou seja, a ‘maquinaria transgénica’ já foi eliminada das plantas.
Como assim? Uma planta transgénica pode deixar de o ser?
Quando as plantas produzem sementes, essas sementes são uma nova geração que pode já ter segregado genes que conferiam a transgénese. Ou seja, durante um processo de divisão celular específico podem perder os transgenes.
Disse que trabalha com uma variedade geneticamente editada e que é comercializada…
Sim, trabalhamos com a Moneymaker. Há outras variedades de tomate que até são mais fáceis de transformar geneticamente, mas não são boas para o consumidor.
Deixe-me ver se percebi… Estamos a consumir tomate geneticamente editado?
Não, não estamos. Referia-me à variedade. As videiras também têm varias castas que são variedades na realidade. A que está a ser consumida não sofreu qualquer processo de transformação genética. Isso foi o que fizémos no laboratório.
Estando a fazer também investigação fundamental, imagino que sinta alguma frustração se pensar que a União Europeia pode tratar a edição genética como tratou os OGM, não autorizando a comercialização de produtos agrícolas resultantes dessas tecnologias.
Há uma grande falta de informação. As plantas geneticamente modificadas ou geneticamente editadas são plantas diferentes. Elas começam por ser transgénicas, mas, no fim, são plantas que apenas têm uma mutação direcional que tem muito menos off targuets (alvos fora do que nós queremos) do que a mutagénese convencional não dirigida que é usada há dezenas de anos… A maior parte das pessoas não sabe isto. Esclarecê-las devia ser uma missão não só dos investigadores como dos jornalistas, que na minha opinião deviam ter mais formação em biologia para perceberem do que estamos a falar. Acho que há um conjunto de fatores que tem levado a uma certa resistência da população. As pessoas têm medo do que não percebem. Depois, também há várias questões políticas envolvidas. Uma coisa é certa e premente: se em resultado das alterações climáticas tivermos efetivamente um problema de segurança alimentar, com a União Europeia a querer diminuir a aplicação de fungicidas em 50% em poucas décadas, se calhar não teremos outra opção se não adotar as tecnologias de edição do genoma na agricultura, porque não temos tempo para andar a fazer aqueles cruzamentos clássicos que demoram anos a atingir resultados. Não temos tempo para isso. De resto, não me parece que as pessoas que estão a passar fome em África estejam muito preocupadas em saber se é transgénico ou não. Ou seja, há um conjunto de fatores a considerar e a necessidade é um deles. Eu já provei o tomate que desenvolvemos no laboratório, com as linhas estabilizadas, e devo dizer-lhe que me faz mais confusão a quantidade de pesticidas que põem na pêra Rocha. Mas o consumidor não questiona tanto isto. Será que isto não terá muito mais impacto na saúde das pessoas do que um tomateiro em que se fez uma mutação que poderia ter sido feita de uma forma natural e que além disso é um produto muito mais controlado?
Qual é a finalidade do seu trabalho com o tomate e a uva?
A finalidade é torná-los mais resistentes à seca e fungos, fazer com que tenham mais qualidade e uma maior produtividade. Agora, isto pode ser feito de várias formas: podemos não só controlar o amadurecimemto como também, no futuro, melhorar o sabor. Existem várias abordagens neste momento a ocorrer na biotecnologia vegetal e uma delas é por exemplo ir buscar os parentes selvagens das espécies domesticadas que têm muita resiliência ao stress mas não têm características de sabor ou de tamanho muito apetecíveis, etc.. Isto é algo que eu, no futuro, gostaria também de estar envolvida e que já começou a ser feita para o tomateiro, que é a domesticação de novo. Ou seja, em vez de transferirmos genes das plantas selvagens para as domesticadas através de um processo de introgressão envolvendo cruzamentos, vamos mutar nas selvagens o que não confere um fruto de qualidade. E no tomateiro usaram edição genética para isto. Talvez um dos trabalhos mais elegantes que vi nos últimos tempos publicado na Nature Biotcehnology. Portanto, respondendo à sua pergunta: o nosso objetivo é sempre melhorar a qualidade do fruto, evitar perdas pós-colheita e também pré-colheita, porque por exemplo no caso da uva, é muito atingida com infeções por fungos (por isso é que a videira é a planta com maior uso de pesticidas na Europa).
É possível recuperar ou ir buscar espécies selvagens das variedades já domesticadas?
Sim, recorre-se aos centros de domesticação que existem em vários países. É uma tendência que de facto está a acontecer e é muito aliciante. E não tem que necessariamente envolver a engenharia genética.
De que forma a Biotecnologia pode contribuir para o futuro sustentável da fruticultura e da indústria?
Se encararmos a biotecnologia como uma área que tem necessariamente de ter colaborações com outras áreas, nomeadamente a engenharia, ecologia, biologia, e outras, eu até colocaria a questão ao contrário. Penso que o futuro sustentável não sobrevive sem a biotecnologia neste momento. Com uma população em crescimento, com os desafios das alterações climáticas, não me parece que possa fazer-se uma agricultura convencional durante muito mais tempo e alimentar a população mundial.
A Europa não pode continuar a fechar os olhos aos que se passa noutros países…
No que se refere à engenharia genética sim, mas eu estou a olhar para a biotecnologia com várias abordagens. Por exemplo, a abordagem de que eu estava a falar do microbioma funcional: é uma abordagem que não envolve engenharia genética, mas é uma abordagem de biotecnologia. Nós na realidade estamos a usar organismos vivos para o controlo de pragas. Portanto, não tem necessariamente de ser com recurso a engenharia genética. Agora, relativamente ao problema da videira (em que muitas vezes obtém-se alguma resiliência, mas depois o fungo ganha alguma resistência e há que aplicar mais pesticida), penso que nesse caso a engenharia genética é a melhor solução na medida em que podemos transferir ou mutar não sei quantos genes e o problema fica resolvido durante mais tempo. Não digo para sempre, porque não sabemos.
Qual é a situação de Portugal no caso da uva e do tomate? Somos autosuficientes ou precisamos de produzir mais?
Na uva acho que estamos muito bem. Estamos a produzir vinhos de grande qualidade que já começam a ser reconhecidos. Temos uma particularidade muito engraçada: somos o país que tem mais castas por metro quadrado. Temos aqui um potencial enorme, inclusivamente de germoplasma, ou seja de castas que estão preservadas em centros mas que não foram usadas até à data e que poderão vir a ser usadas quando se começarem a sentir mais os efeitos das alterações climáticas. No geral, acho que estamos bastante bem porque mantivemos as nossas castas. Ou seja, apesar de nós termos umas 30 castas mais usadas, ainda temos muito por explorar. Em França, por exemplo, isso não acontece. Nesse sentido acho que Portugal está bastante bem. Agora, são castas que são da espécie Vitis vinifera, que não é propriamente resistente a pragas. Se as temperaturas aumentarem, o risco de serem atacadas por pragas já existentes e por novas pragas também aumenta. São desafios que temos de enfrentar, e não sei se no futuro não estaremos a consumir vinho de plantas híbridas com espécies resistentes a fungos como a Vitis rupestris. Confesso que provei recentemente estes vinhos e não fiquei fã, mas talvez seja o futuro.
E no caso do tomate?
Acho que se podia fazer mais. Sobretudo, se compararmos com o exemplo da Holanda. Tive a oportunidade de trabalhar lá como Pós-Doc e sempre me fascinou o pragmatismo dos holandeses em relação à agricultura – eles conseguem produzir tomate sem sol para a Europa Central em larga escala. Os produtos hortícolas contribuem grandemente para o PIB na Holanda e não estou a falar só das tulipas. Eles produzem muito tomate e sempre me fez muita confusão porque é que nós em Portugal não temos essa realidade. Eles usam muita tecnologia para produzir tomate e de facto conseguem produzir. Eles têm estufas em que é tudo muito controlado, em hidroponia. Em Portugal devia haver maior ligação entre a investigação e a indústria do tomate. Penso que desse modo se poderia aumentar a produção.
Dos projetos anteriores e já concluídos, há algum particularmente relevante e que queira destacar pelos resultados interessantes?
Tinha sido descrito que as uvas, bem como a grande maioria dos frutos, quando estão verdes são resistentes e o que verificámos num estudo que desenvolvemos foi que efetivamente há maior resiliência mas não há resistência. Nós conseguimos de facto ter frutos verdes com graus de infeção bastante elevados. No nosso caso, pensamos que isso terá também a ver com a casta (usamos uma casta Trincadeira que é muito sensível e suscetível à Botrytis), a proximidade com o Atlântico, a humidade, e inclusivamente a própria estirpe de Botrytis. Foi um resultado muito interessante porque desmontou o dogma de que os frutos verdes eram resistentes. Não são resistentes, são é resilientes, portanto têm mais resiliência que os frutos maduros. Estudamos não só os genes que eram expressos como também o que estava a acontecer com o fungo e chegamos a resultados engraçados. Curiosamente, o fungo é mais virulento, fica mais agressivo (o que até faz sentido) no caso de castas resistentes e fica mais preguiçoso quando já infetou (como é natural).
Os seus interesses na investigação têm-se centrado na maturação e defesa dos frutos. Porque escolheu esta área?
A biotecnologia vegetal sempre me fascinou. Eu queria trabalhar com espécies que fossem importantes para o país e comecei com a uva, que é talvez uma das espécies mais emblemáticas. E o tomate também, não só por ser um fruto que em Portugal se produz em grande quantidade, mas também porque é um bom modelo para estudar o amadurecimento de frutos. Já existe protocolos de transformação. E porquê frutos? Porque acho que é um orgão vegetal muito fascinante.
Ana Margarida Fortes
Ana Margarida Fortes é professora assistente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e lidera o grupo de Genómica Funcional e Biotecnologia da Fruta. Fez doutoramento em Biotecnologia Vegetal em 2003. Publicou 50 artigos e cinco capítulos de livros. Tem estudado a maturação do tomate e da uva e as respostas de defesa da videira quando confrontada com agentes patogénicos fúngicos devastadores. Os principais objetivos da sua investigação são o estabelecimento de supostos modelos de amadurecimento da fruta e interacção entre os agentes patogénicos da fruta, com base em dados ómicos a serem posteriormente validados pela análise funcional, em particular a edição de genes. É, desde 2017, a editora supervisora da Plant Direct (Wiley, American Society of Plant Biologists e The Society for Experimental Biology). Em 2016, o seu grupo recebeu o primeiro Prémio de Inovação do CNOIV com o trabalho “Transcriptome and metabolome reprogrammig in Vitis vinifera cv. Trincadeira berries upon infection with Botrytis cinerea” publicado no Journal of Experimental Botany.
(Esta entrevista do CiB foi publicada na edição de outubro da revista Vida Rural)
O artigo foi publicado originalmente em CiB – Centro de Informação de Biotecnologia.