Um dia, num programa de televisão, resolvi chamar a atenção para o facto de Odemira ser quase o único concelho rural que aumentou de população entre o censo de 2011 e 2021.
Na resposta, outra das pessoas que estavam no programa resolveu dizer que temos ser mais inteligentes, como sociedade (não me estava a chamar estúpido, evidentemente), que aceitar o modelo económico de Odemira, sugerindo, em alternativa, que olhássemos para o concelho do Fundão.
O que se passa com as discussões à volta dos problemas de Odemira é que a invocação de argumentos de elevado conetúdo emocional, em paralelo com a omissão de informação concreta, tem carta de alforria entre as elites portuguesas (não sei se nas outras também, suspeito que sim).
O caso de Ana Sá Lopes que refiro no meu último post e de Alexandra Leitão, ilustram bem o problema.
Por causa de uma doença complicada Ana Sá Lopes chocou com a realidade e, de uma forma honesta que me apraz registar, resolveu afirmar publicamente que mudava de ideias para não contrariar a realidade.
O caso de Alexandra Leitão, que reclama para si uma liberdade de escolha na escola dos filhos (que ela baseia no facto de ter dinheiro para isso) ao mesmo tempo que decide politicamente contra a liberdade de escolha de terceiros (porque não têm dinheiro para isso), é, no entanto, muito mais vulgar: Alexandra Leitão (como Marta Temido, para manter o exemplo de Ana Sá Lopes) faz os outros chocarem com uma realidade a que ela continua imune, o que lhe permite manter as suas ideias, independentemente da realidade verificável.
Os problemas dos imigrantes que têm trabalho em Portugal e, mesmo assim, não se conseguem libertar da pobreza e ter condições de vida dignas, têm sido usados pelas agendas políticas que abominam a liberdade económica e a capacidade de criar riqueza dos outros (“Ser progressista exige uma visão política e comprometida do mundo. Em que se traduz essa exigência? Na disponibilidade para pagar impostos”, uma citação de elevado recorte intelectual e profundidade filosófica que exemplifica bem o mundo em que vivem algumas das pessoas que apoiam essas agendas).
Só que a responsabilidade pelas condições de vida destas pessoas não tem a sua raiz nos malandros dos empresários que pagam mal, ou de sectores que têm modelos de negócio intrinsecamente maus.
Claro que haverá sempre malandros, exploradores, escroques no meio disto tudo e, periodicamente, lá aparecem as notícias de mais uma rede de tráfico humano que é desmantelada.
O problema de fundo está no facto de criarmos pouca riqueza e no facto de nós, enquanto sociedade, acharmos que as empresas têm uma responsabilidade social que as deveria impelir a pagar acima do que podem, garantir habitação condigna e por aí fora, cabendo ao Estado a tarefa de os obrigar a cumprir obrigações que o Estado não quer pagar.
Quando uma emigrante cabo-verdeana resolve, ao fim de oito anos em Portugal, trazer finalmente o filho e o marido, ela tem um problema de fundo: onde encontrar casa que seja compatível com o seu rendimento e com a nova configuração da família?
São os seus empregadores que são responsáveis pelas suas dificuldades em resolver esse problema?
Sim, na medida em que o rendimento que lhe proporcionam, e a rede de contactos que lhe proporcionam, não lhes permite encontrar a solução que a senhora Ministra da Agricultura encontrou: um T2 da Misericórdia, com uma renda abaixo dos mil euros, num sítio aceitável.
Mas há também responsabilidade do patrão dos patrões em não lhes proporcionar um rendimento mais elevado que permita ter disponibilidade para pagar melhor a quem lhes trata dos filhos.
E há também responsabilidade do Estado entender que ficar com 30 a 40% do rendimento do trabalhador é razoável.
E responsabilidade do Estado na criação de regras para a construção que impedem a produção de casas mais baratas.
E responsabilidade do Estado em ficar com 28% da renda, se algum maluco decidir construir para alugar, apesar do contexto e dos riscos de que o contexto venha ainda a ser pior para os investidores em construção de habitações.
E responsabilidade do Estado na forma como trata os imigrantes, incluindo os seus processos de legalização e de reagrupamento familiar.
E responsabilidade do Estado na forma como fecha os olhos a situações como as do prédio da Mouraria (toda a gente conhece este tipo de situações há anos, mas uma situação semelhante no tempo da Covid tratou de esfregar esta realidade na cara dos mais distraídos).
Continuai a discutir os problemas da agricultura intensiva (ou do negócio que escolherem para proclamarem a vossa superioridade moral à custa da realidade dos outros) como raiz dos problemas sociais que os seus trabalhadores enfrentam, só porque não gostam de ver estufas onde antes davam grandes passeios aos domingos, porque a tranquilidade está assegurada: serão sempre eles, os outros, a chocar de frente com a realidade.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.