Leite a ferver – Carlos Neves

Podia ter chamado “leite a arrefecer” a este artigo, porque retratava o desânimo de muitos produtores de leite, mas preferi um título mais “quente”, a condizer um sector em “ebulição” e a lembrar uma frase que ficou célebre em anteriores debates sobre o preço pago ao produtor: “O leite vai subir, mas é no tacho, quando ferver” (e depois subiu mesmo).

Por estes dias, a produção de leite em Portugal continental vive entre a angústia e a ebulição, entre as dúvidas e as dívidas. Os sinais políticos não convidam à produção. O governo não considerou o sector estratégico no âmbito do PDR para o continente, o que significa menos apoios ao investimento no sector, em comparação com outras fileiras de produção e pode provocar uma situação de concorrência desleal por parte dos Açores (onde o sector é, naturalmente, estratégico) ou da vizinha Espanha.

Tenha-se também em conta as perspectivas de abertura do mercado Europeu, o fim das ajudas à exportação, o fim “anunciado” das quotas leiteiras, tudo a prometer baixas no preço do leite a médio prazo.

Considere-se, por último, que as “ajudas” comunitárias ao preço do leite, que antigamente eram incluídas no pagamento mensal da indústria à produção, são agora entregues directamente ao produtor, mas só no final do ano, ou no ano seguinte, limitadas à quota detida, condicionadas por um conjunto de regras, desligadas da produção a partir de 31de Março próximo (integrando-se nos pagamentos do RPU) e arriscando-se a ver 20% do seu valor cortado no âmbito da “modulação voluntária”. Posso compreender que a indústria tenha baixado o preço do leite ao produtor, porque deixou de receber as ajudas que são agora entregues directamente no “prémio aos produtos lácteos”. Mas a indústria também tem de perceber que esse prémio é temporário, de adaptação e o objectivo do seu desligamento é, precisamente, deixar funcionar o mercado. Assim, nenhum produtor de leite, ao planear o futuro, pode entrar com esse valor como receita prevista. Se o preço efectivamente pago não for rentável, vai abandonar a produção. E vai abandonar, obviamente, antes que seja obrigatório tratar do licenciamento das explorações e efectuar investimentos relacionados de requalificação ambiental.

No debate que se vai fazendo, tem-se argumentado que o preço pago em Portugal ainda é superior à média comunitária. Será possível produzir em Portugal ao mesmo preço que no Norte da Europa?

No nosso país, a produção de leite desenvolveu-se em regiões de minifúndio, com parcelas pequenas e dispersas. A terra, apesar de fértil, é pouca, e tem custo elevado ao comprar, alugar, mobilizar ou regar (agora sem o subsídio da electricidade verde). Não havendo condições de pastagem, produz-se forragem (milho silagem) também com custos elevados, e complementa-se a alimentação das vacas com rações compradas. Nos últimos meses, o preço da ração subiu a pique, devido à procura de cereais para o fabrico de biocombustíveis. Isto é muito preocupante, porque a ração é o custo mais importante de uma exploração leiteira, além do investimento com instalações e animais (cujo preço também atingiu níveis históricos, por causa da língua azul). Conseguiremos nestas condições “espremer” ainda mais a gestão das explorações leiteiras, para sermos competitivos face ao Norte da Europa? E depois baixamos “mais um bocadinho” para competir com os países de Leste, e depois com os Estados Unidos, e depois com a Nova Zelândia? É este o caminho para o “futuro” da produção de leite em Portugal?

Em vez de continuarmos fixados nos preços baixos e dependentes de marcas brancas, porque não seguir os exemplos de quem tem preços mais altos ao produtor? Porque não apostar em queijos, iogurtes, etc, produtos diferentes com alto valor acrescentado?

Um olhar superficial para a produção de leite, baseado na dinâmica industrial do sector ou nos números de preenchimento da quota nacional, pode levar a pensar que está tudo bem e que a realidade desmente as dúvidas que referi atrás. Um olhar mais atento, um inquérito às cooperativas, às fábricas de rações e outras empresas que fornecem os agricultores, mostrará que as dívidas são cada vez mais, sobretudo nas explorações aparentemente mais dinâmicas, mas cujo aumento de produção foi feito à custa de investimentos elevados em animais, quotas, instalações, ou equipamentos. E essas explorações, esses produtores de leite, não vão desistir em Abril, porque quem tem dívidas não pode ter dúvidas. Esses estão presos e vão continuar, até que melhores dias venham ou a falência seja inevitável.

Pensando no futuro a médio prazo, seria bom que o Governo olhasse com mais profundidade o sector, quebrasse o silêncio e definisse com os parceiros a posição portuguesa sobre o futuro das quotas leiteiras. Em conjunto com a Indústria, também pode e deve ajudar a melhorar a gestão das explorações agrícolas, até onde for possível, ao mesmo tempo que se inova na transformação para garantir melhores preços, como referi atrás.

Contudo, esses remédios de longo prazo não evitam uma intervenção urgente com “oxigénio” para aliviar a “falta de ar” que a produção sente actualmente. Falando claro, como dinheiro é o que falta, talvez o governo deva começar a pensar na antecipação do prémio aos produtos lácteos. E como o Estado demora a pensar e ainda mais a pagar, a indústria terá de abrir rapidamente os cordões à bolsa e arranjar mais uns trocos para subir o preço do leite ao produtor, antes que a produção desapareça. A “distribuição” não deixa? Os produtores já levaram vacas para a porta do supermercado, já distribuíram leite na rua, podem voltar a fazê-lo. O que não podem é apertar mais o cinto. Está no último furo…

Carlos Neves
Jovem Agricultor

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