Candal, Casal Novo, Cerdeira, Chiqueiro e Talasnal. Prémio Nacional da Paisagem 2022, as Aldeias da Serra da Lousã já tiveram muitas vidas — e uma morte anunciada — e estão aí para as curvas.
Desta vez, a neve não se aguentou. Derreteu ao sol um par de dias depois de ter caído e a água seguiu o seu curso, serra abaixo, paredes de xisto abaixo. No nosso conforto, tentamos imaginar os longos e frios serões de Inverno passados à volta do fogo, onde se partilhavam memórias e executavam tarefas. Fia-se o linho, doba-se e ensarilha-se os novelos, planeia-se a caminhada à aldeia vizinha, à ribeira com o cântaro, recupera-se energia para de madrugada voltar com o rebanho aos socalcos que pendem da cumeeira.
“A Lousã mudou muito”, dizem-nos. A Lousã já teve muitas vidas — e assistiu à morte anunciada de um punhado de aldeias, que, como na obra de Ingmar Bergman, vão jogando as suas peças e ideias num jogo de xadrez, procurando perceber qual o caminho possível para fugir desse destino.
“Vimos a aldeia a deteriorar-se. Vimos as casas literalmente a cair e as paredes a desabar”, recorda Catarina Serra, que chegou pela primeira vez à Cerdeira com quatro anos e hoje, aos 30, nos apresenta as dez casas recuperadas do Cerdeira Home for Creativity, um projecto que é a própria aldeia, hoje com espaço para uma Escola de Artes e Ofícios (de cerâmica, de madeira e de outras artes visuais e saberes), residências artísticas, o forno mais famoso da região (o forno sem fumo é obra do sensei Masakazu Kusakabe) e muitos outros Elementos à Solta numa aldeia onde corre um riacho, correm veados e também corre a filha mais velha de Catarina, Mel, de três anos — há-de correr em breve Lua, de apenas alguns meses.
“A aldeia é um reflexo de mim. Todos os meus valores são os que implemento no projecto. Não há aqui nada que se faça só para vender. É tudo do coração”, sorri Catarina, filha de um dos dois casais responsáveis pela ressurreição da Cerdeira — à aldeia abandonada chegaram primeiro os alemães Bernard Langer e Kerstin Thomas (escultora que descobriu a Cerdeira aos 24, quando estudava em Coimbra) e seguiram-nos os portugueses Natália e José Serra. “Lembro-me de dizer aos meus pais ‘não sei como é que a Kerstin consegue viver aqui… Eu nunca viveria aqui!’. Agora, passo aqui os meus dias todos!”
Neste projecto “de família e de amigos” (“é um bocadinho de cada um de nós”), com uma “componente ecológica transversal”, já trabalham 18 pessoas, sendo que metade da equipa não é originalmente da Lousã. “São novos habitantes que trouxemos para a Lousã. É um exemplo de que há projectos no interior que podem ser construídos e que ajudam a fixar a população. Alguns deles estão a ter filhos. Como nós, acabam por ficar ligados à aldeia. É toda uma nova dinâmica que se cria num sítio que estava completamente abandonado”, explica a representante da família Serra, em vias de metamorfosear outra aldeia em fim de linha (Silveira) e de explorar A Mina, uma espécie de centro cultural no centro da Lousã.
O renascer da serra, das suas aldeias em fim de linha, deve-se aos Serra e aos artistas que respiram a serra, aos hippies que ocuparam casas que ninguém queria — e que agora quase que não chegam para as encomendas — e aos doutores de Coimbra que se juntavam para comprar e recuperar refúgio para o fim-de-semana, deve-se aos povos da serra, à ti Lena e ao Fabrice, às pessoas engenhosas que plantavam um castanheiro quando nascia um filho. Deve-se também aos responsáveis políticos que olharam para o território com olhos de ver, que olharam para as construções de xisto que fazem parte da serra desde o século XVIII como parte de um todo e avançaram corajosamente para um plano de intervenção designado por Planos de Aldeia, considerando a recuperação de cinco aldeias (Candal, Casal Novo, Cerdeira, Chiqueiro e Talasnal), cinco nomes que os locais trazem na ponta da língua e que muitos portugueses (e alguns estrangeiros) se habituaram a visitar regularmente
A custo, vai-se mantendo a traça do edificado, erigido em tempos mais desafiantes, e vai-se utilizando quase em exclusivo os materiais locais, a pedra, o xisto, a madeira de castanho e de carvalho. Foi também essa rusticidade telúrica, essa simbiose entre o artificial e a natureza que somou pontos e valeu às aldeias da serra da Lousã e às suas gentes o Prémio Nacional da Paisagem — distinção criada em 2012 e atribuída desde então por um júri da PNAP (Política Nacional de Arquitectura e Paisagem) — que visa reconhecer a implementação de uma política ou de medidas que tenham contribuído para a protecção, a gestão e/ou o ordenamento da paisagem e que promovam a sensibilização da sociedade civil para a importância de um tema. Com esta distinção, preparatória do Prémio da Paisagem do Conselho da Europa, em curso neste momento, pretende-se “premiar o mérito de quem, em Portugal, contribui para um desenvolvimento territorial mais sustentável e promove a sensibilização para a importância da paisagem na qualidade de vida”, lê-se no regulamento.
Em 2022 foi atribuído à candidatura “Aldeias da Serra da Lousã – Onde as aldeias soam a único”, tendo o júri considerado o projecto “exemplar ao nível das políticas e medidas desenvolvidas” que, ao longo do tempo, de vinte anos de trabalho, “permitiram a recuperação do património edificado e revitalização das aldeias, atribuindo-lhe novas funções que evitaram o seu abandono e declínio”. “A Lousã mudou muito”, lembra Ricardo Fernandes, natural da Lousã e vereador da Câmara Municipal desde 2009 para as áreas da Protecção Civil e bombeiros, Segurança, Recursos naturais e desenvolvimento rural, Ordenamento do território, Urbanismo e regeneração urbana, Habitação e Protecção e Bem-estar animal. “O número de habitantes da serra foi decrescendo até se contarem pelos dedos das mãos. E não eram jovens”, sublinha.
Nas primeiras fotografias a preto e branco, a serra, onde poucas culturas resistiam ao frio, era despida de árvores, para além de alguns castinçais. Cresceu a mancha florestal à velocidade das políticas do Estado Novo e foram ficando ainda mais desfasadas e difíceis as ligações entre aldeias, que gradualmente foram perdendo zonas de pastagem, gado e pessoas. “Em 2000, o que tínhamos era um território sem pessoas, desumanizado. Havia umas batidas ao […]