“Mais do que um cabaz” leva o que sai do campo directamente para a cidade, sem passar por prateleiras

Muito antes de se falar em cadeias de distribuição e prateleiras de supermercado anónimas, a alimentação era um elo directo entre quem a produzia e quem a consumia. Foi para resgatar essa proximidade que surgem em Portugal projectos de agricultura sustentável onde produtores e consumidores — intitulados de “co-produtores” partilham um compromisso a longo prazo.

É o caso da CSA Partilhar as Colheitas, iniciada em 2015 pela Herdade do Freixo do Meio, no concelho de Montemor-o-Novo. Através do projecto, a Herdade entrega os seus produtos em vários pontos de recolha no distrito de Évora e na Área Metropolitana de Lisboa, sendo um deles o restaurante O Pigmeu, na freguesia de Campo de Ourique, em Lisboa.

Para o restaurante, a parceria com o projecto é fundamental. “O porco que recebemos é um dos melhores em Portugal, e em termos de vegetais é sempre uma qualidade excelente”, assegura Vasco Santa Marta, subchefe de cozinha d’O Pigmeu.

“Já trabalhamos com eles há muitos anos e queremos continuar”, reforça. Foi por isso que, quando a Herdade do Freixo do Meio começou a distribuir cabazes enquanto CSA comunidade que sustenta a agricultura , o dono do restaurante, Miguel Peres, aceitou logo ser um dos pontos de recolha em Lisboa.

Uma prática de “economia solidária”

Quase todos os produtos usados n’O Pigmeu são de origem biológica, mas o restaurante gaba-se acima de tudo de “virem de pequenos produtores locais e de sabermos como é criado”, explica Vasco Santa Marta. “No caso do porco, por exemplo, temos a rastreabilidade total do produto, o que é muito importante para sabermos como é que o podemos utilizar.”

A CSA da Herdade do Freixo do Meio é um dos vários exemplos de projectos ligados à história da Regenerar – Rede Portuguesa de Agroecologia Solidária, um movimento nacional de comunidades que começou a dar os seus primeiros passos em Novembro de 2015, unido para provar que é possível transformar o acto de comer num compromisso ético e comunitário.

Estes projectos podem ser designados de comunidades que sustentam a agricultura (CSA, a piscar o olho para o inglês community supported agriculture) ou associações para a manutenção da agricultura de proximidade​ (AMAP, inspirado no francês association pour le maintien d’une agriculture paysanne), mas o princípio é o mesmo.

“Um dos grandes mantras da Regenerar era ‘Isto não é um cabaz’”, refere Paula Serrano, co-fundadora da ​AMAP Maravilha, criada em 2019, em Palmela​. “É muito mais do que isso: estamos a criar uma comunidade e também a praticar economia solidária, porque não estamos a obedecer a especulações.”

“Se quiseres comprar produtos de origem local e conhecer o seu produtor, é um trabalhão para conseguires lá chegar normalmente, a forma mais fácil de comprar é ir a um hipermercado, mas não tens informação de quase nada e não consegues criar relação com quem produziu”, diz por seu turno Pedro Horta, um dos membros da AMAP Beja.

Por outro lado, garante, contribuir para uma comunidade “é mais do que um acto de compra”. “No fundo, também é um momento de partilha, de encontro entre amigos e há aqui relações de confiança com aquilo que nós comemos.”

Relação “sem intermediários”

A AMAP Beja foi criada em Setembro de 2022, nascida das raízes lançadas pelo Eco-Comunidades na Planície, um grupo de cidadãos e de agricultores do distrito. “Já abordávamos questões relacionadas com o sistema alimentar e chegámos a criar um mercadinho de vendas internas”, relata Pedro Horta.

Foi em 2022 que o cenário mudou, quando Rita Magalhães e Sérgio Correia, um casal de produtores ligados à AMAP Sado, no Cercal, lançaram uma proposta ao grupo bejense. “Desafiaram-nos para fazer uma pequena oficina para reflectir sobre o sistema alimentar do qual fazemos parte e, no final, fizeram-nos um convite para criarmos uma AMAP”, relembra Pedro Horta.

Rita e Sérgio foram os primeiros fornecedores da AMAP Beja durante o seu primeiro ano de existência. Quando o casal se retirou do projecto, foi introduzido um número maior de produtores, incluindo localidades como Mértola. Apesar de reunirem alguns fornecedores a granel, para produtos como azeite ou azeitonas, “o coração da coisa é o fornecedor de cabaz”. “É que está o compromisso”, descreve Pedro Horta: “O produtor fornece com frequência, naquela variedade e peso mínimo, e depois os co-produtores vão buscar o cabaz, organizam actividades ou angariam mais pessoas.”

Uma nova associação está a ser criada no distrito, no concelho de Castro Verde, a partir de pessoas desta localidade que já compravam cabazes da AMAP Beja. “Isto é muito bom para quem está a fazer a produção, porque significa que já tem mais um conjunto de co-produtores com quem podem contar para planear a produção e pagar salários às pessoas que trabalham no campo.”

Agricultura com base comunitária

O conceito destas comunidades já estava a ser posto em prática noutros países quando o primeiro projecto do género surgiu em Portugal: o Re.Ci.Pro.Co, desenvolvido no Poceirão e em Odemira, em 2003. Mais de uma década depois, em Novembro de 2015, um encontro nacional em Serralves, no Porto, trouxe à tona a necessidade de promover ainda mais estas comunidades.

A rede Regenerar acabaria por ser oficialmente criada em Dezembro de 2018, com o objectivo de juntar todas as AMAP existentes em Portugal e definir um conjunto de orientações para o seu funcionamento, com base em três princípios fundamentais: agroecologia, relação de escala humana e a alimentação como bem comum.

“É um processo demorado, até porque as AMAP pressupõem um compromisso e o envolvimento dos co-produtores com a co-responsabilização da produção agrícola. É preciso tempo e muita resiliência”, reforça Paula Serrano, de Palmela. A vantagem é que o produtor tem um retorno financeiro garantido e menor desperdício, ao passo que o consumidor desfruta de produtos locais e de uma relação directa com quem os fornece.

“As grandes superfícies comerciais acabam por capturar uma parte substancial do valor dos alimentos e o retorno do produtor normalmente é bastante baixo”, explica Pedro Horta. “Uma relação directa com o consumidor permite praticar preços semelhantes, mas o retorno fica no produtor e não em intermediários.”

Partilhar alimentos, saberes e emoções

Foi ao lado de Henrique Delgado que, em 2017, Paula Serrano ajudou a fundar a Quinta Maravilha, onde sempre procuraram trabalhar de forma colaborativa com outros produtores.

“Houve um encontro em Lisboa chamado Comboio Cidade-Campo, onde a ideia era ligar as pessoas das cidades às que vivem no campo. Foi nesse contexto que ouvi falar em CSA pela primeira vez”, lembra Paula Serrano. “Quando descobrimos que esse modelo existia, percebemos que era isso que nós queríamos.”

A Quinta Maravilha não integrava a rede Regenerar quando esta foi criada, em 2018 – “apanhei-a, talvez, no seu primeiro ano de vida” -, apesar da fundadora da quinta ter estado presente no encontro de Novembro de 2015, no Porto, quando se reconheceu a importância de dar a conhecer a filosofia das AMAP.

Os encontros da Regenerar eram também feitos online, reunindo membros de todo o país: “Tínhamos momentos de partilha não só de saberes como também emocional – de angústias, do que passávamos na terra”, relembra Paula Serrano. “Era um momento em que podíamos partilhar o que estávamos a passar com outros agricultores.”

E depois de Regenerar?

Actualmente, as AMAP e CSA continuam o seu caminho de forma independente, já que a rede não se encontra mais activa. Sem mãos a medir com o trabalho das respectivas AMAP, os membros acabavam por não ter disponibilidade para a coordenação nacional. “Tudo era trabalho voluntário”, descreve Paula Serrano, mencionando a falta de financiamento que permitisse contratar alguém para o trabalho administrativo.

O fim da Regenerar não impediu a rede de deixar um legado para o futuro: a co-fundadora da Quinta Maravilha destaca o documentário Agroecologia em movimento, de João Garrinhas, lançado este ano, que faz um retrato destes projectos de agricultura de proximidade no país.

Para tornar este filme possível, conta Paula Serrano, a rede lançou uma campanha em que conseguiu angariar mais de três mil euros em 2021. “Finalmente podemos mostrar o que é que são as AMAP em Portugal e o que permaneceu da Regenerar e da sua importância.”

Texto editado por Aline Flor

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