Mas porque é que ele não deu logo todas as explicações?

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Há dois dias publiquei no Observador um ponto de vista sobre as razões que levam a imprensa a ser incapaz de olhar, com um mínimo de objectividade, para a Spinumviva (esta é uma generalização e todas as generalizações são injustas).

Estranhei ter demorado tanto tempo a aparecer um comentário como este: “O ponto é porque Montenegro não esclareceu logo de inicio actividade da empresa e falou que a empresa era e tinha sido constituida para gerir o patrimonio imobiliario da familia. Só mais tarde, várias semanas, é que se falou na consultadoria de gestão.”.

A razão para ter estranhado tanto tempo é que este é dos argumentos mais usados para tentar manter vivas as teorias de conspiração sobre o que se esconde por trás da Spinumviva.

Não se pense que são apenas comentadores desconhecidos das caixas de comentários, repare-se no que escreve Susana Peralta, uma das mais ubíquas vozes do espaço público, sempre com um estudo académico pronto para demonstrar as suas teses, mas raramente encontrando estudos que tragam informação contrária aos seus preconceitos, uma verdadeira especialista do cherry picking.

Vou buscar um exemplo de Susana Peralta que é, justamente, considerada mais sólida que a maioria dos comentadores, sendo das mais relevantes representantes desta nova esquerda a quem a desigualdade incomoda mais que a injustiça, sempre pronta para descobrir interesses escondidos nas actividades privadas e completamente cega em relação aos interesses escondidos nas actividades do Estado.

“A estratégia de soltar informação a conta-gotas começou logo no debate da primeira moção de censura, a 21 de Fevereiro, quando Montenegro explicou que a Spinumviva havia sido criada para gerir a herança familiar de terrenos durienses e engarrafar umas garrafas de vinho. Quando percebemos que o grosso da actividade da Spinumviva era consultoria a outras empresas, Montenegro recusou dizer quais”.

Tenho a firme convicção de que Susana Peralta não mente conscientemente, com o objectivo de enganar as pessoas, estará mesmo convencida de que a mentira que diz corresponde à verdade, porque confia no que se publica na imprensa e acha desnecessário recorrer a fontes primárias de informação, mas isso é apenas a demonstração de como o esmagador domínio da esquerda frívola no espaço público acaba por conseguir impor uma realidade paralela, mesmo a pessoas formadas e informadas.

Para quem quiser aceder a fontes primárias de informação, tem aqui o debate da moção de censura de 21 de Fevereiro de que fala Susana Peralta e pode constatar que:

1) Não é Montenegro que resolve trazer para o debate os seus terrenos, é o Chega, a generalidade da oposição e a imprensa (desculpem o pleonasmo) que, desde o primeiro minuto do debate, se centram na questão do imobiliário e o associam à alteração da lei dos solos;

2) “Vou directo ao assunto … a criação da Spinumviva. Estava eu fora da política activa. Tinha solicitações e intervenções empresariais que extravasavam o reduto da advocacia. Tendo dois filhos que optaram por não seguir direito, mas gestão e administração de empresas e tendo eu próprio adquirido uma especialização em gestão e tirado uma pós-graduação em protecção de dados pessoais, e tendo ainda procedido a pertilhas familiares … pensei e decidi nos seguintes termos”. Como vê, cara Susana, é mentira que Montenegro tenha ocultado a actividade de consultoria, logo na primeira intervenção que fez sobre o assunto;

3) “Vou criar uma entidade para o trabalho fora da advocacia, envolvendo toda a família e das duas uma, ou não volto à política e me dedico também a essas actividades e preparo o caminho para os meus filhos, ou se voltar à política, deposito esta parte importante da minha vida, nos meus filhos”. Como vê, cara Susana, é mentira que Montenegro tenha apresentado a Spinumviva como uma empresa para gerir heranças e encher umas garrafas de vinho;

4) “O objecto e o absurdo da centralidade do imobiliário … o objecto da sociedade é amplo”, como vê, cara Susana, é mentira que Montenegro se tenha escondido atrás de uma história da carochinha sobre gestão de heranças, vai mesmo ao ponto de considerar absurda a importância que dão ao imobiliário associado a essa gestão de heranças;

5) “actividades de consultadoria de gestão, de exploração agrícola, turística e empresarial, planeamento, organização e controlo de informação e gestão, reorganização de empresas, organização de eventos, consultadoria sobre actividade seguradora, protecção de dados pessoais, segurança e higiene no trabalho, política de marketing, gestão de recursos humanos, gestão e comércio de bens imóveis … próprios ou de terceiros, arrendamento e outras forma de exploração dos mesmos, exploração e produção agrícola, predominantemente vitivinícola”, como vê, cara Susana, escrever o que escreveu sobre o que Montenegro disse em 21 de Fevereiro é uma mentira de tal tamanho que, mesmo involuntária, é de uma falta de rigor que a envergonha como académica;

6) “Em terceiro lugar, a facturação e os clientes”, pois é, cara Susana, depois de explicar a criação da empresa e o seu objecto (que era a questão central na moção de censura, é bom não esquecer), Montenegro passa longos minutos a descrever quer a facturação, quer os clientes, nomeando apenas um, que já era conhecido;

7) “O pico de facturação de 2022 … ainda antes de assumir a presidência do PSD … eu próprio fechei e apresentei a conta final de serviços de reestruturação de uma empresa familiar de comércio de combustíveis”, como vê, cara Susana, Montenegro explicou, com pormenores que me dispenso de transcrever para aqui, tudo o que andou a empresa a fazer, antes de ele estar na política activa, e depois de ele ter voltado à política (com uma evidente quebra de facturação e resultados que desmonta qualquer teoria de conspiração sobre os benefícios criados para a empresa pelo facto de Montenegro ter passado a ser um político de primeira linha, primeiro como chefe da oposição e, depois de um incidente político que não poderia prever, ter acabado primeiro-ministro);

8) “Os clientes âncora, e com necessidade de acompanhamento permanente, foram os seguintes…” Montenegro, sem nunca dizer exactamente quem eram esses clientes, faz uma descrição suficientemente detalhada desses clientes, ao ponto de, logo nesse debate, Pedro Nuno Santos ter identificado, sem esforço, a Solverde. Como vê, cara Susana, até pode argumentar que o que escreve é o que está escrito na generalidade dos jornais, mas isso não a dispensa de consultar fontes primárias de informação antes de escrever mentiras do tamanho das que escreve.

9) Depois dessa caracterização, Montenegro descreve, pormenorizadamente, a actividade actual da empresa, centrada na protecção de dados. Como vê, cara Susana, eu sei que para os seus objectivos políticos dá jeito dar gás a essa conversa de falta de transparência, mas eu não entendo como expõe desta maneira a sua reputação de académica rigorosa, mentindo, mesmo que involuntariamente, de forma tão primária.

10) “Quarto, o destino dos lucros ou a não distribuição de dividendos”, extraordinário, não é, cara Susana, até nisto Montenegro deu explicações pormenorizadas, ao contrário do que decorre das mentiras que escreveu;

11) “Por decisão dos sócios … os lucros estão totalmente destinados ao investimento … e temos dois objectivos em carteira … a eventual construção de uma adega e de uma unidade de turismo na quinta do Douro … e um eventual investimento numa startup tecnológica”. Só falou de encher umas garrafas de vinho, não foi, cara Susana.

Vai longo o post, Montenegro continua com a explicação da renúncia à gerência da empresa que, para o efeito deste post, já é matéria menos relevante.

O que me interessou realçar neste post é como é fácil espalhar, reforçar, inventar mentiras, quando elas servem a argumentação das esquerdas, incluindo a instrumentalização de académicos com provas dadas que se dispensam, a si próprios, de verificar as fontes primárias de informação.

Calculo que que não seja por qualquer cálculo político ou pessoal, é mesmo porque estão tão convencidos da sua superioridade moral, que são incapazes de olhar para a realidade no pressuposto de que somos todos basicamente iguais.

Para mim, não deixa de ser hilariante ler um apoiante dos governos do PS, incluindo do governo Sócrates, e ministro de António Costa, preocupado com a degradação ética que representa o voto em Montenegro, mas com estes não vale a pena perder muito tempo porque o ridículo é suficientemete corrosivo.

Mas se se convenciona aceitar como verdadeira a ideia de que Montenegro não deu explicações substanciais desde o primeiro momento e se se usa essa convenção sem necessidade de a demonstrar para obter ganho político, mesmo sendo só válida numa realidade paralela, talvez seja altura das vítimas do debate público viciado fazerem um esforço mais sério para reequilibrar o tabuleiro de jogo.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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