Muita gente acha que é tudo o mesmo, mas há diferenças na carne destes porcos. Viagem ao montado pela mão de um suinicultor exemplar, um dos 70 que lutam contra o extermínio da raça alentejana.
A minha ideia de maternidade suína não era bem isto. Imaginava um pavilhão de cheiro intenso e parturienses apertadas em alvéolos, com porcos aos guinchos. Ora, na Herdade de São Luís as maternidades são quintais jeitosos com cerca de 800 m2 e uma casota cada um. Há 90 deles, alinhados no montado, com bácoros passeando alegremente, e o único cheiro que se sente é o das azinheiras e sobreiros que dão sombra ao terreno.
Francisco Alves, o homem que gere tudo isto, faz questão de me explicar detalhadamente porque é que esta maternidade é melhor do que as outras. E porque é que dali irão nascer “os melhores presuntos do mundo”, com quantidades raras de ácido oleico, gordura insaturada boa para o coração, e doses extraordinárias de umami.
Estamos às portas de Montemor-o-Novo, em pleno Alentejo. Eis o reino do porco alentejano, porventura a mais deliciosa das raças suínas — mas também das mais incompreendidas. Acontece, aliás, uma coisa curiosa. Ao mesmo tempo que o porco alentejano parece estar em todo o lado — dos menus dos restaurantes às prateleiras dos supermercados —, os números dizem-nos o contrário. A raça está em declínio, sendo considerada “muito ameaçada”. De um total de 12 mil porcas alentejanas, existentes em 2012, há neste momento menos de 5 mil.
Sucede que o que andamos a comer são, afinal, primos modernos do porco alentejano, com sangue Duroc nas veias. Escondida em denominações comerciais vagas, como “porco preto”, esta carne é produzida em regime intensivo, a maior parte em Espanha, frequentemente com rações, sem que os bichos alguma vez tenham posto os olhos num chaparro ou afocinhado uma bolota.
No que respeita aos presuntos “pata negra” acontece algo parecido. São quase todos oriundos de animais com mistura de ibérico e porco branco, ainda que as marcas premium apostem em rações de grande qualidade e lhes dêem tempo no montado. No caso, ser Made in Espanha é uma medalha e, prova dessa valorização, é que “95 por cento dos porcos criados para presunto, em Portugal”, viajam para as câmaras de secagem e afinação instaladas do outro lado da fronteira. Sem surpresa, os louros, neste particular, ficam todos com nuestros hermanos. E não deviam.
Se perguntarmos a um alentejano com duas ou três noções do que é um porco e uma montanheira, como Francisco Alves, ele explica porquê. “Os melhores dos melhores, sejam 5 Jotas ou Señorio de Montañera, fazem-se com os nossos animais”, garante o produtor, ele próprio fornecedor das marcas mais exclusivas de presunto.
De notar, contudo, que estes exemplares são raríssimos. Estamos a falar de uma percentagem ínfima dos presuntos certificados com braçadeira preta: ou seja, dos 100 por cento ibéricos alimentados 100 por cento a bolota — mas não de todos: dentro desta categoria, poucos têm genética da raça suína alentejana. “Serão uns 18.000 a 20.000, num total de 700.000 produzidos anualmente em Espanha”, indica o responsável da Herdade de São Luís (Instagram: @herdadesluis_porcusnatura). . Na verdade, poucos portugueses já terão tido o privilégio de os provar. “São presuntos especiais, que vão para os restaurantes Michelin e afins”.
Esta colaboração luso-espanhola estabeleceu-se há muitos anos. Portugal dá a genética e quilómetros em montado, Espanha entra com a arte do corte e com a cura. “Preferem comprar já feitos e sabem que têm muita qualidade. O risco fica do nosso lado”, diz Francisco Alves.
O produtor sabe bem o que isso significa. Há várias gerações que os seus antepassados se dedicam à pecuária, nesta herdade colada a Montemor-o-Novo, cerca de 700 hectares de terrenos ora planos, ora ondulantes. O avô e o pai já tinham animais e, por quatro ou cinco vezes, viram as varas serem fulminadas. Nos anos 1960, sobretudo, a peste suína africana dizimou populações inteiras, obrigando a mudanças drásticas no modo de produção, daqui resultando o início do confinamento dos animais.
Foi nesta altura que o porco de raça alentejana começou a desaparecer, estando hoje no grupo das raças ameaçadas, depois de um recrudescimento, nos anos 1990. “No mundo inteiro, actualmente, há cerca de 4500 porcas de raça alentejana, todas em Portugal, há excepção de umas 20 que foram levadas por um português para os E.U.A.”
Em Espanha, a situação é diferente: há muitos porcos ibéricos, mas já não se sabe bem o que “ibérico” significa. E, aqui, começa a separação de águas.
Antes de tudo, tem de se entender de que animais estamos a falar. Simplificando, dir-se-ia que todo o porco de raça alentejana é ibérico, mas quase nenhum ibérico é alentejano.
Sem surpresa, a investigação nesta matéria tem sido dominada pelos espanhóis. De acordo com uma classificação feita, em 2006, por Ignácio Clemente, investigador da Universidade de Sevilha, o porco ibérico engloba várias raças, variedades e linhas descendentes do porco mediterrânico.
Na primeira metade do século XX, todavia, estas raças quase desapareceram. Em 1944, o porco ibérico estava praticamente extinto em Espanha, depois da introdução de raças de carne mais eficientes. Foi o engenheiro agrónomo Miguel de Odriozola, na propriedade estatal Dehesón del Encinar, situada em Toledo, quem recuperou as populações ibéricas, cruzando e seleccionando animais a partir de quatro linhas então existentes: duas portuguesas e duas espanholas.
Uma das linhas portuguesas chama-se Caldeira, nome do proprietário onde os animais foram recrutados por Odriozola, em Elvas, e é uma variedade preta. A outra é a Ervideira, originária de Évora, uma raça ruiva, igualmente seleccionada pelo engenheiro agrónomo espanhol como “ibérica pura”.
Ora, o porco ibérico espanhol actual já tem muito pouco a ver com este, de 1944. Depois da peste suína, em 1963, destas quatro raças terá saído um quinto grupo, o Torbiscal, um híbrido com “cascos descolorados, às riscas brancas e pretas-avermelhadas”, com mais capacidade de produzir carne, mais musculado e com menos gordura subcutânea, já longe de ser de um negro uniforme e intenso.
Nesta altura, aparece um outro actor que vem mudar definitivamente o jogo, de seu nome Duroc. O Duroc, fruto do cruzamento de Old Duroc e Red Jersey, viajara dos Estados Unidos da América e rapidamente se revelou muito eficaz no cruzamento com o Ibérico. Os porcos Ibéricos-Duroc vieram encurtar toda a cadeia de produção, ao mesmo tempo que proporcionavam níveis altos de gordura intramuscular e mantinham características analíticas aparentemente aproximadas às dos Ibéricos puros.
A excitação espanhola com o Duroc foi de tal ordem que o ibérico voltou a ver-se em risco de extinção. Em 2001, por forma a evitar que isso acontecesse, a lei passou a obrigar a que, nos cruzamentos com a raça norte-americana, a mãe fosse de ascendência ibérica, assim dando-se mais garantias da preservação das linhas ancestrais, quer em presuntos quer na produção para carne.
Quanto à história do porco de raça alentejana ela é ligeiramente diferente. Ainda que Portugal também tenha também apostado na via dos porcos industriais, cruzando alentejanos com porcos Landrace, Large White e Duroc, a partir dos anos 1960 e 1970, os animais certificados conservaram características mais rústicas e puras do que os porcos ibéricos usados pelos espanhóis.
E que características eram essas? Investigadores portugueses dos anos 1950 e 1960 estabeleceram que as três principais linhas ou variedades na origem do porco alentejano eram a preta ou Caldeira, a ruiva ou Ervideira e a aloirada. Num artigo de 2019, produzido por uma equipa do Instituto Politécnico de Beja, liderada por António Rosário Oliveira, refere-se que esta última variedade, considerada descendente directa do porco Ibérico ancestral, foi dada como extinta.
“Embora haja exemplares em algumas explorações pecuárias, não dispomos ainda do número de efectivos existentes no país”, lê-se no texto. Os mesmos investigadores chamam a atenção para outra linha em risco de desaparecer, a variedade mamilada, “recentemente inscrita no Livro Genealógico da Raça Suína Alentejana”, que tem a particularidade de ter mamilos na zona do pescoço.
De acordo com números da Direcção-Geral de Veterinária, em 2019 constavam do livro genealógico de adultos 524 machos e 4501 fêmeas em linha pura, distribuídos por 352 criadores. A quebra é evidente. Em 2012, havia 12 mil fêmeas. Em 2016, números do Agrupamento Complementar de Empresas do Porco Alentejano, citados no estudo do Instituto Politécnico de Beja, indicavam 7301. Ou seja, só entre 2016 e 2019 terá havido uma baixa de 2800 animais, correspondente a uma quebra de 38 por cento.
Se olharmos para o efectivo total, esse declínio é ainda mais notório. Hoje, haverá 20 mil porcos desta raça em Portugal, quando, em 1955, existiriam 400 mil animais (45 por cento da produção suína total, à época), segundo o Boletim do Arrolamento Geral de Gado.
Voltando à comparação entre os ibéricos espanhóis e os alentejanos portugueses, apesar dos cruzamentos feitos ao longo dos anos, de ambos os lados da fronteira, continuam a haver diferenças notórias. A engenharia genética espanhola tendeu para a produção de mais músculo e para uma maior eficácia na transformação de alimento (bolota e rações) em carne.
O próprio Juan Vicente Olmos assume que o caminho tomado em Espanha deixa dúvidas. “A realidade é que a maioria dos cruzamentos, tradicionalmente, não tiveram em conta a manutenção das diversas linhas e realizaram-se aleatoriamente ou procurando outros critérios de selecção diferentes, pelo que hoje é difícil encontrar populações de variedades puras”, escreveu.
Mesmo os animais espanhóis classificados como 100 por cento Ibéricos, muitas vezes, revelam traços de Duroc. Análises laboratoriais realizadas por Ignácio Clemente revelaram que, de um total de 24 presuntos vendidos como “Ibéricos puros”, ou com outras etiquetas com o mesmo significado, em supermercados, 16 tinham cruzamentos com Duroc.
O cruzamento com Duroc é permitido, mas não para os Ibéricos puros. Tudo isto está detalhadamente definido na chamada “norma ibérica”, da União Europeia, mas há casos em que o consumidor fica sem saber o que está a consumir.
Uma das marcas de presunto mais prestigiadas, por exemplo, a Joselito, decidiu ficar fora da classificação das braçadeiras. De acordo com essa certificação, consoante as cores da braçadeira (branca, verde, vermelha ou preta), colocadas nas patas dos presuntos, podemos ter informação sobre a genética e sua alimentação.
A braçadeira preta é a dos topos de gama, garantindo-se que o animal tem um mínimo de dias de montanheira, a comer bolota, e é de genética 100 por cento Ibérica. Mas há nuances que, mesmo dentro dos chamados topos de gama, fazem a diferença e podem ser notadas a olho.
“O porco ibérico é o dobro do tamanho do porco alentejano”, diz o produtor da Herdade de São Luís, Francisco Alves. “Isso dá um presunto com nove quilos e o outro com sete. No final, são muitos euros de diferença”. A outra grande diferença está na gordura. Embora a carcaça do alentejano seja mais pequena, ela tem bastante mais gordura. Mais gordura implica mais tempo de cura, mas aumenta a qualidade. “Tem menos rentabilidade, mas o presunto é brutal”.
Prova disso é que, de acordo com Francisco Alves, a quantidade média de ácido oleíco nos Ibéricos puros é de 53 por cento, mas os seus animais chegam a ter 58 por cento, às vezes 60 por cento. “Os espanhóis sabem que, se comprarem o meu porco alentejano, vão ter o presunto pendurado mais uns seis meses. Mas também sabem que, depois, o produto final não tem nada a ver. É um espectáculo de um presunto”, conclui, alargando o elogio à maioria dos seus colegas. “Os melhores presuntos espanhóis são de animais portugueses. Sem dúvida nenhuma”.
A questão na cabeça de toda a gente é: porque é que as marcas portuguesas não fazem, então, presuntos como fazem os espanhóis? Há muitas teorias. A primeira, começa no matadouro: o corte dos presuntos é uma tarefa especializada, em que os espanhóis são especialistas.
Acresce que as instalações para a secagem e cura escasseiam por cá. Poucos produtores as têm ou, quando as têm, elas não reúnem as condições necessárias. O jornalista Edgardo Pacheco, que se tem dedicado ao assunto, comentava comigo há dias que uma das diferenças tem a ver com a dimensão das câmaras de cura, bem maiores em Espanha: “Quanto maiores, mais micro-organismos andam à solta”. Mais micro-organismos costuma significar mais complexidade de sabores. Mais aromas.
Francisco Alves parece corroborar. Desde há uns meses que começou a ir matar os seus animais a Espanha, onde também são curados, na famosa serra de Jabugo. A sua marca Absoluto (absoluto.com.pt) garante presunto só de suínos de raça alentejana, alimentados a bolota, com quatro ou cinco meses de montanheira, passeando livremente em montados de sobro e azinho.
Mas será que, mesmo assim, os Absoluto competem com os topos de gama espanhóis? Francisco acha que sim — e acrescenta uma vantagem: os seus são produzidos num regime verdadeiramente sustentável, amigo do ambiente e defensor do montado. Os seus não fazem montanheira só o mínimo absoluto exigido por lei. A montanheira é o seu habitat. Toda a vida.
Montar o montado
O montado é um regime agro-silvo-pastoril delicado. Ao contrário do que se possa pensar, não é uma paisagem natural, mas foi criada pelo homem, eventualmente pelos árabaes, durante a ocupação da Península Ibérica, entre os séculos VIII e XV. Sem animais, a existência do montado fica ameaçada.
O porco de raça alentejana é o animal mais adaptado e que mais proveito tira dele, mas Francisco Alves entende que, quer os bovinos, quer os ovinos (produz merino) e os caprinos (cabra serpentina) são importantes para o seu equilíbrio.
A gestão dos espaços na Herdade de São Luís é feita minuciosamente, através de cercas eléctricas móveis. Todos os dias, há movimentações para que as terras sejam fertilizadas com os vazios sanitários e a vegetação cresça e seja consumida de forma equilibrada.
Os ovinos transformam vegetação seca em quilos de carne; os caprinos são úteis a limpar terrenos com silvas, mais espinhosos, como nas linhas junto aos cursos de água. Por sua vez, os porcos passeiam por quase todo o lado. São os reis do montado. Têm a primazia da bolota.
A filosofia de Francisco Alves assenta na chamada agricultura regenerativa, uma escola nascida nos E.U.A, há duas décadas, que por cá ganha adeptos. Francisco garante que, neste regime extensivo, o sequestro de carbono proporcionado pela fotossíntese supera largamente os danos causados pelo libertação de gás metano. Por outro lado, estando os animais a nascer e a viver ao ar livre, felizes e saudáveis, não há necessidade de ministrar tantos cuidados de saúde. Os seus suínos só levam a vacina para a doença de Aujeszky, obrigatória por lei.
A carne dos animais de Francisco Alves pode ser encontrada no Talho das Manas, através da sua página no Instagram. Actualmente, a procura supera a oferta, mas nem sempre foi assim. No que diz respeito ao porco, as “Manas” — e não só — inicialmente chamavam-no de “maluco”, devido à quantidade de gordura que os seus animais tinham. “É só gordura!”, foi uma frase que Francisco ouviu muitas vezes.
Hoje, essa gordura é vista como uma bomba de sabor, usada em vários produtos que as “Manas” transformam, de hambúrgueres a rolos de carne. E acontece que, com estes animais, todos os cortes são suculentos, mesmo aqueles que normalmente seriam rijos ou secos.
Francisco chama ainda a atenção para a venda enganosa de carne de porco alentejano. Basta olhar para o número total de efectivos para percebermos que todos esses restaurantes que anunciam secretos de porco alentejano estão, na verdade, a vender carne espanhola, mais branca que preta.
Muitos distribuidores e produtores de carne portugueses começaram, aliás, a comprar porcos ibéricos com cruzamentos de Duroc aos espanhóis. A sua gordura, sendo mais saborosa do que a dos porcos brancos de intensivo, é muitas vezes enjoativa, com notas a porcum, típicas de uma alimentação com rações de fraca qualidade.
Mas, no final, para além da genética e da bolota, o segredo está na felicidade dos bichos — e essa acontece acontece quando vivem soltos e livres no montado. Voltando à zona das maternidades da Herdade de São Luís, Francisco Alves recorda uma história que demonstra bem isso. Numa altura em que registou muitos abortos, ele optou por soltar as porcas longe do monte, longe de tudo, encaminhando depois os machos para o mesmo local. “Passados dois meses e meio, fomos lá e as porcas estavam todas prenhas. A partir daí mudámos o maneio”.
A raça alentejana convive mal com a clausura. Nós devíamos conviver mal com o seu extermínio. Por várias razões. Porque não há no mundo outra carne assim.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
O artigo foi publicado originalmente em Eggas.