As luzinhas de Natal começam a acender por antecipação nos princípios de Novembro, por imperativo comercial. As montras e o interior das lojas enchem-se de brinquedos e artefactos propícios às compras ditas de Natal, muito antes do celebrado dia 25 do mês final do ano. Atiram-se ao ar sextas-feiras pretas, como quem oferece rebuçados à “rabanhita” aos petizes de todas as idades. Repetem-se à exaustão os êxitos musicais da quadra, de Mariah Carey aos Wham, jingle bell, jingle bell, já não há papel.
Duvido que Jesus Cristo gostasse da feira em que tudo isto se tornou, mas concedo que sobra dentro de mim um resquício do período natalício que conheci enquanto crescia. Confesso que tento estender a todos os dias, os sentimentos solidários, a ternura da amizade, o espírito familiar, mas o Dia de Natal é mesmo especial, para quem tem a sorte e o privilégio de o passar em paz e relativa harmonia. Pressinto o final de uma época, de um tempo, o meu tempo, sem que nada de bom se anuncie no horizonte, na minha região, no meu país, neste mundo que conheci. Afligem-me as nuvens carregadas que ameaçam tempestade, ouvem-se os tambores de guerra cada vez mais perto. Num ápice, muita gente, demasiada gente, parece radicalizada nas exigências, nas reivindicações e nos protestos. Já não bastavam os activistas, como agora se usa chamar, em ultrapassadas trincheiras de esquerda e direita que não levam a lado nenhum. Levantam-se barricadas em ambos os extremos ideológicos. Por onde anda a moderação, o consenso e o bom-senso? O que foi feito do pragmatismo, do diálogo e da tolerância? Onde estão os construtores de pontes, os promotores da concertação, os práticos da ponderação? Que aconteceu ao reformismo, ao gradualismo, à prudência e à reflexão?

De repente, o país parece um vulcão à beira de explodir, em cada garganta um revolucionário, debate-se aos berros e interrupções, perdeu-se a noção de respeito entre pares, poucos parecem interessados em ouvir os outros, vive-se aos encontrões entre bolhas ideológicas, comunicacionais, tecnológicas, sociais, raciais, económicas, frágeis como bolhas de água a sair do sopro de crianças, destinadas inevitavelmente a rebentar. Onde estão os moderados, lembrando o centro, a intermediação, o meio-termo de que “nem tanto ao mar nem tanto à terra”, o excesso é mau, o exagero mata, o que é demais não presta. Celebram-se os cinquenta anos da queda do Estado corporativo de Salazar e Caetano. Mas vivemos num Estado capturado por uma série infindável de corporações, ordens, sindicatos, associações patronais, ONG’s, e outras entidades intocáveis. Clama-se por reformas imprescindíveis, mas imediatamente se levanta uma barragem de trincheiras mal um governo tenta uma medida mais ousada, fora da caixa, tentando mexer no inamovível. Cai-lhe a vaca sagrada da Constituição em cima, imaculada e perpétua. Decretam-se greves na função pública por tudo e por nada, com uma insustentável leveza, num evidente uso e abuso de um direito, usado como arma política de arremesso partidário, geralmente afectando os extratos sociais mais baixos, que são quem mais sofre quando páram os transportes, paralisam os serviços de saúde, suspendem processos judiciais, congelam quem depende da acção do Estado.
Sindicatos autónomos e individuais, há mais de 400 neste país. Só na CP, são 15 para um universo de menos de 4.000 trabalhadores. Uma fartura. Greves parciais? Horárias? Ao minuto? Às sextas-feiras para estender pontes de fim de semana? Plenários de trabalhadores em horário de trabalho? Greves de zelo regulamentárias? Greves “self service” à vontade de cada um? Não há limites para o abuso do fim social do direito à greve. Podem ser legais num sentido formal, mas causam a maior disrupção possível em serviços essenciais, e geram um enorme prejuízo para o público e a economia, de impacto desproporcionado. Flagrante desigualdade deste país, como muitas outras de sacho profundo, pudessem os agricultores decretar greve ao que vem da terra, havia de ser bonito nas prateleiras dos supermercados e mercearias. Heróis da televisão, entronizados pelos telejornais, com direitos de antena permanentes, os profissionais do protesto enchem o espaço noticioso, líderes de classe impõem a sua lei.
Grandes negociatas continuam a fazer-se à mesa de restaurantes michelin, contratos de sanguessugas na teta do Estado, e contam com a conivência de muitos braços políticos instalados ao mais alto nível das instituições. É grande a rede de avenças milionárias. O combate à corrupção, aos conflitos de interesses e à falta de transparência progride a ritmo de caracol. Os direitos das minorias sobrepõem-se à vontade democrática das maiorias. É o mundo virado ao contrário. Há preto, branco e cinzento, mas predomina sempre o preto carregado, das outras cores nem o cheiro, não vá a bondade, a integridade e a genuinidade ser contagiosa. Uma náusea! O Portugal positivo dificilmente entra ali, no meio do crime, das urgências hospitalares, da bola, dos concursos com prémios ridículos, da cultura “play-back” dos ditos programas de entretenimento, das doses maciças de publicidade comercial e do comentariado político sem pinga de isenção.
Fala-se muito, actua-se pouco, critica-se tudo, como se vê neste texto, mas quando alguém avança com sentido de mudança, cai-lhe o carmo e a trindade em cima, como lhe poderiam cair o templo da mãe soberana e os shoppings todos do Algarve por atacado. Mas a perda maior de todas nesta última década, tem a ver com a liberdade de expressão. A restauração da pior das censuras, a que é auto-imposta. O receio de dizer o que se pensa, sob pena de execução sumária no tribunal das redes sociais, pelo pelotão dos zelotas do verbo e da doutrina “woke”, quando não mesmo pela lei, por delito de opinião. Onde se podem situar aqueles que, rejeitando o regresso à “longa noite fascista”, lamentam a transformação radical e acelerada do país onde nasceram e cresceram, por via de uma política migratória massiva e desregulada que, num prazo muito curto introduziu em Portugal um número desproporcionado de pessoas com hábitos, valores e visões muito diferentes, e por vezes incompatíveis, com aqueles que sempre caracterizaram os portugueses? Longa interrogação.
Haverá lugar para aqueles que se recusam a seguir os campeões da demagogia, mestres na arte de manipular sentimentos racistas e xenófobos, mas que continuam a ter orgulho na História de Portugal e na Língua Portuguesa, e nos valores da matriz judaico-cristã que inspirou o mundo ocidental dos nossos tempos? Será ilegal um português dizer que se sente estrangeiro na sua própria terra? Porque será proibido pelos novos censores do pensamento reconhecer que a insegurança acrescida é uma realidade, não é uma percepção, nem uma abstração, tampouco uma invenção? Porque não se chamam os bois pelos nomes? Porque não se assume que rapidamente se instalaram no nosso território dos santos costumes as máfias dos primeiros comandos da capital, os reis da noite, empresários de sucesso no mundo da droga, da exploração do trabalho clandestino e semi-escravo que medra por aí à vista de toda a gente, e cujos baixos salários também dão jeito a muitos empregadores, diga-se de passagem? Não será outra forma de neocolonialismo? Infelizmente, o mal está feito, estragaram Portugal, e quando se tenta estancar a hemorragia, há muita gente e instituição apostada no obstáculo, na disseminação do caos. Perdeu-se a noção de ordem e autoridade indispensáveis a qualquer Estado, pior ainda quando se proclama um Estado Democrático e de Direito.
O povo eleitor pronunciou-se por uma mudança, em grande maioria, mas nem parece. Portugal está bloqueado, enredado numa malha de contrapesos. Reformar a Saúde, a Segurança Social, o Trabalho? Pago para ver. Da Justiça nem é bom falar. A telenovela que apresenta diariamente José Sócrates como estrela principal, expõe a nudez de um sistema ultragarantístico no processo penal, só ao alcance de quem tem dinheiro para pagar a advogados caros e prolongar julgamentos até à prescrição final. Um altar à corrupção! Tamanha falta de vergonha e desaforo é uma afronta à Justiça e aos portugueses. Um vómito. Sim, gosto muito do Natal, mas não sei se uma dose reforçada de rabanadas será suficiente para aliviar a acidez da alma.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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