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Nem abate, nem venda, moçambicanos chamam os bois pelos nomes

Inocência Xavier, 56 anos, remove os troncos que fecham o único acesso ao curral e chama pelo nome cada boi.

Onze bois saem para o pasto em Moha, aldeia do interior de Sussundenga, centro de Moçambique.

Inocência conta à Lusa que se dedica ao pastoreio desde a infância e herdou parte dos animais dos seus pais, agora no seu curral.

Como milhares de outros criadores de gado em Manica, a mulher de 36 anos não se lembra da última vez que abateu uma cabeça de gado para consumo ou vendeu um animal para atender a outras necessidades.

“Já fizemos troca, uma vez, por uma carroça e um arado”, que usa para cultivar os campos, entre palhotas de argila e cobertas de capim, abrigos da família que tem o “sonho alto” de construir uma casa convencional.

O único rendimento que obtêm dos bois provem do aluguer dos animais para os campos agrícolas de outros: neles só se vê essa utilidade, a de ajudar nos trabalhos pesados.

Na aldeia de palhotas precárias e escombros de edifícios coloniais, o estilo de vida dos criadores de gado contrasta com a riqueza contada por cabeças de animais que por tradição ninguém quer abater ou vender.

Mesmo que a muitos criadores de gado ainda lhes falte o mais básico, como um par de sapatos ou cobertores.

A tradição local “defende que a criação não se mata de qualquer maneira, porque faz parte da família”, uma realidade que teima em resistir até hoje, diz à Lusa Elias Vulande, professor e antigo administrador de quatro localidades de Sussundenga.

O Inquérito Agrário Integrado publicado pelo Ministério de Agricultura em 2021 indica que a província de Manica tem um efetivo de 247 mil cabeças de gado, 15% das quais no distrito de Sussundenga.

A província destaca-se ainda na produção de leite de vaca ao deter 41,3% da produção nacional, segundo o Instituto Nacional de Estatística.

Em contrapartida, refere o documento, a insegurança alimentar e desnutrição aguda em crianças agravaram-se.

Ao longo do tempo, Elias Vulande tem sensibilizado a população “para a necessidade de se comer a criação, a partir de cabrito, suíno e outros animais, porque é preciso saber criar e comer”, além de vender, para suprir outras necessidades.

Ele próprio um criador de gado, é a prova vida de que se consegue melhorar as condições de vida com a venda de animais.

Mais a este, Sílvia Ernesto levanta-se apressada da esteira – um tapete tradicional costurado com caniços e linha extraída de cascas de árvores – e caminha descalça para o curral no canto do seu quintal.

Mostra o seu gado, em Munhinga.

Começou a criar três bois em 2015, agora tem seis animais, o número mais baixo entre criadores da sua aldeia, e conta à Lusa que os usa para a lavoura e outros trabalhos pesados.

“Os animais têm-me ajudado muito (…) são a minha única garantia para cultivar, carregar água e fazer outros trabalhos pesados”, afirma Sílvia Ernesto.

Na mesma aldeia de Sílvia, outro criador, Ilídio Isaías, construiu um “pequeno império” com a criação de animais e reconhece que muitos outros criadores não têm tirado proveito “da riqueza que têm nas mãos” e, por isso, “continuam pobres e com crianças desnutridas”.

“Para mim o gado bovino é a primeira riqueza de um pobre” explica Ilídio Isaías, que já vendeu 50 animais, o que lhe permitiu construir casa, comprar duas viaturas e ter 10 moageiros.

O criador vai mais além e está a diversificar a origem dos rendimentos.

Dedica-se também à produção de frutas, sobretudo citrinos, para se precaver de pragas que podem “dizimar todos os animais”.

“Partindo deste pensamento, concluo que aqueles que não aproveitam os animais, limitando-se a pastorear, não sabem os benefícios que têm ao alcance”, refere Ilídio Isaías.

Entretanto, o sol de Inverno está quase a esconder-se e do outro lado da aldeia, Sílvia olha pelo seu gado.

Conta um segredo: ambiciona ter 30 cabeças no curral, tem planos para todas no trabalho rural e provavelmente cada uma vai ter um nome, não importa que Ilídio mostre que outra vida é possível.


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