À frente da Nestlé Portugal, Anna Lenz voltou a um mercado, que já conhecia, a viver uma crise nova. “Queremos manter o equilíbrio justo da parte produtora, da nossa e da parte do consumidor”, diz.
Directora-geral para Portugal da maior companhia alimentar do mundo, Anna Lenz reconhece que o grupo aumentou os preços em 2022 no mercado nacional – o que foi repassado pelos retalhistas, frisa – e ainda não tem decisão fechada sobre o que vai acontecer em 2023. A primeira mulher a ocupar o cargo de liderança da companhia em Portugal distingue a crise actual da situação que o país viveu de 2011 a 2014, entre o desemprego de então e a inflação de agora. “O que fizemos é muito diferente do que podemos fazer hoje”, num mercado que vive de promoção em promoção, afirma. Até porque esta gestora formada em Matemática Teórica prevê “uma vaga de aumentos de salários que vai ainda impactar nos preços”.
Com quase 2500 trabalhadores e duas fábricas no país, a Nestlé celebrou, esta sexta-feira, 100 anos em Portugal.
O grupo já apresentou resultados consolidados. Teve um aumento das vendas e um decréscimo dos resultados líquidos consolidados. Como correu em Portugal?
Nós tivemos vendas líquidas de 677 milhões de euros (facturação total), o que corresponde a um crescimento total de 8,3%, sendo que as vendas locais tiveram um crescimento de 5,2%, 52 milhões de euros a mais. Incluem também 125 milhões de euros de exportação, um crescimento de 24%. Cerca de 60% do volume produzido em Portugal vai para exportação.
Aumentámos os preços, quando fomos obrigados, ao retalho, que depois, por sua vez, passou o aumento ao consumidor
Fomos fortemente impactados pela inflação como todas as famílias em Portugal, sofremos um encarecimento das matérias-primas, embalagens, mas também no transporte, na energia e na mão-de-obra. Fizemos de tudo para minimizar o impacto ao consumidor final – fizemos vários projectos de eficiência interna, reduzimos os investimentos de marketing, fizemos optimizações em tudo o que tem a ver com a rede de produção e de embalagens, mudámos as maneiras de transportar em paletes para garantir transportes mais cheios, mudámos para painéis fotovoltaicos em vários edifícios. Fizemos muitas coisas para conseguir, o máximo possível, internamente, compensar esses aumentos.
Depois, de facto, aumentámos os preços, quando fomos obrigados, ao retalho, que, depois, por sua vez, passou o aumento ao consumidor – mas aumentámos muito menos do que [foi] o nosso impacto, graças a economias, mas também porque aceitámos neste ano de 2022 uma baixa de lucro quando comparado com o anterior, em linha com os resultados publicados do resto da Europa.
Sobre os resultados, em Portugal sofreram a mesma evolução do que os consolidados pelo grupo?
Diria mais em linha com a Europa. Porque essa inflação tão pronunciada durante o ano de 2022 foi mais dentro da Europa, especificamente, do que dentro do grupo.
Sendo que os resultados em Portugal foram de…
Não divulgamos.
Nos últimos três anos – exercícios de 2020, 2021 e 2022 – sofreram perdas em Portugal?
Não. De facto, durante a covid muita coisa mudou, e uma das coisas que mudaram foram as vendas por canal. Sim, sofremos no canal fora do lar – onde temos um grande negócio, sobretudo no café, mas também vimos que esse consumo se transferiu para dentro do lar, onde também temos um grande negócio. Fora do lar são as marcas Sical, Buondi, Tofa, Christina. E dentro do lar são Dolce Gusto e Nespresso. Vimos até que durante a pandemia muitas pessoas voltaram a tomar café em casa e fizeram um upgrade da maneira como tomaram café em casa. Até as vendas das máquinas aceleraram bastante, e as vendas no retalho. Assim, o retalho conseguiu compensar o fora do lar. Houve uma baixa no fora do lar, mas, simultaneamente, uma subida pelo retalho.
Nos 677 milhões de euros, qual é a área que vos traz maior remuneração?
O negócio maior, de longe, é o café. Somos um dos poucos mercados do grupo que têm muitas marcas locais. Temos as marcas internacionais, como a Nespresso, Starbucks [via licença do grupo norte-americano] e Nescafé. Mas depois temos muitas marcas locais muito fortes: Buondi e Sical são as duas maiores – e temos uma coisa única aqui, que é termos as duas marcas dentro do sistema internacional, da Dolce Gusto. E é o único mercado ao nível mundial que tem uma marca local – e essas duas marcas já fazem mais de metade das nossas vendas de café Dolce Gusto. E, no Nespresso, lançámos em 2020 a marca Buondi, que já lidera no retalho dentro do sistema.
Além do aumento salarial que fazemos todos os anos em Março/Abril, fizemos um aumento especial em Novembro de 2022
No café, temos a vantagem de ter uma fábrica no Porto, que é especializada no café roast and ground [torrado e moído], que produz todas as nossas marcas locais, mas que também faz a produção para o exterior. Por exemplo, para a marca Starbucks roast and ground, [a unidade do grupo no Porto] foi a primeira fábrica ao nível mundial, na época, em café moído e torrado.
Como é que as vossas vendas se dividem por área?
Percentualmente, não posso dizer. Mas posso dizer em hierarquia: a maior, de longe, é o café. Isso inclui a Nespresso, que é o negócio de vendas nossas directas ao consumidor, e também aos escritórios. Depois, temos a parte de café de retalho, como o solúvel, ou o Dolce Gusto, por exemplo. E depois temos o negócio fora do lar, com uma força de venda para o canal Horeca [hotéis, restaurantes e cafés] e escritórios.
Em seguida, há o negócio da Purina, as rações de cães e gatos, que teve uma forte aceleração também nos últimos anos porque 60% dos portugueses têm cão ou gato ou os dois. E há também uma maior consciencialização de que os animais não devem comer restos de comida humana. A categoria cresce por estes dois motivos.
A terceira dimensão é a que chamamos nutrição (que tem as marcas Nestum e Cerelac, por exemplo). As pessoas são conscientes de terem boa nutrição e, por exemplo, o Nestum permite uma refeição a 40 cêntimos — e essa é uma das tendências que vimos: querer ser saudável, mas com menos disponibilidade.
O grupo está a realizar um investimento em Avanca. É o vosso maior investimento previsto este ano?
No total, investimos 73 milhões de euros em 2022. Cerca de 43 milhões são para o marketing e comunicação, e os restantes 30 milhões são na área das fábricas (em Avanca, foram 18,1 milhões de euros).
E em 2023?
Continuamos no mesmo sentido. Temos várias áreas onde criamos também valor para a sociedade: de um lado, temos esses investimentos que vão continuar e que vêm na sua maior parte da exportação. Avanca é realmente conhecida no grupo como fábrica especializada em cereais e o Porto em tudo o que tem a ver com cafés. Temos cada vez mais procura e com isso criamos novos postos de trabalho e novos investimentos em linhas ou melhoria das linhas existentes.
Em Portugal, compramos mais de 50% [do abastecimento] a 900 fornecedores locais. Criámos 137 postos de trabalho novos em 2022: na fábrica, por causa da produção maior que tivemos e a outra área do “shared service center”, em Lisboa, onde temos um centro de competências, muito especializado na área de marketing digital, onde fornecemos serviços para a Europa inteira. Essas são as duas áreas de crescimento.
Aumentámos [os preços] mais ou menos metade do que o mercado total no alimentar. Porque a inflação no alimentar foi muito acima da inflação de maneira geral
Obviamente, foi um ano difícil para todas as famílias, para todas as empresas, e não fomos excepção – mas há duas áreas onde não cortámos o investimento. Uma tem a ver com todo o que tem a ver com sustentabilidade, porque é um investimento contínuo que fazemos; e a outra é a parte da inovação. A parte em que nos destacamos da concorrência é a parte da investigação ao nível nutritivo – tivemos vários lançamentos importantes também em 2022. Não desinvestimos nas pessoas – os nossos colaboradores foram impactados, tal como todas as famílias, pela inflação, e além do aumento salarial que fazemos todos os anos em Março/Abril, que é mais ligado à performance individual de cada um, fizemos um aumento especial em Novembro de 2022, para todos os colaboradores que temos em Portugal, muito focado em ajudar as pessoas com rendimentos mais curtos.
Foi igual para toda a gente?
Foi de mil euros para cada colaborador, num salário bruto anual – o que quer dizer que, em percentagem, foi mais para uma pessoa que tem um salário mais curto do que para uma chefia. Além disso, aumentámos o subsídio de turno e os benefícios nas fábricas. Alguém que está pouco acima de um salário mínimo teve os 10% para compensar. E o que fizemos também – e essa também foi uma decisão de Portugal – foi não fazer um pagamento one off [de uma só vez]. Queríamos aumentar o salário de base, de forma permanente.
Na apresentação dos resultados consolidados do grupo há já uma previsão de aumento de preços em 2023 [em 2022 foi de 8,2%]. Em média, em 2022, quanto é que aumentaram em Portugal e qual é que é a vossa previsão para este ano?
Os números exactos, não lhe posso dizer. Posso dizer que foi muito menos – mais ou menos a metade – do que o mercado aumentou. Justamente, graças a essas eficiências internas que fizemos e ao facto de termos aceitado a baixa dos lucros. Aumentámos [os preços] […]