Jaime Piçarra

Notas da Semana: A degradação da cadeia de valor não pode ser solução para o pós-pandemia – Jaime Piçarra

Todos temos estado empenhados em analisar e reagir às estratégias da Comissão Europeia sobre a Biodiversidade e “Do Prado ao Prato”, designadamente as metas a atingir, se devem ser ou não vinculativas, os seus impactos na produção, na soberania alimentar, a integração no PEPAC,  ou ainda no papel que a União Europeia deve ter (ou pretende assumir) no mercado global que, diga-se em abono da verdade, infelizmente e por diferentes razões, algumas delas já aqui refletidas noutros artigos, pesa cada vez menos na atual geopolítica ou na ordem mundial.

Receamos que ao nível do agroalimentar a situação não venha a melhorar com o impacto de todas estas políticas, cada vez mais viradas para o ambiente e o combate às alterações climáticas ou o bem-estar animal, que são naturalmente bem-vindas, mas não nos esqueçamos que não somos uma Ilha e que temos de exigir (e ter a noção se o vamos conseguir fazer) aos nossos principais concorrentes na cena internacional, como a China, os EUA, o Brasil ou a Índia, sem esquecer ainda o Reino Unido.

Sob a égide da FAO, da ONU ou de alterações ao nível da Organização Mundial do Comércio. Essa é uma questão decisiva para os sistemas alimentares e para a sustentabilidade do agroalimentar na União Europeia.

Este é um dos grandes problemas que colocamos ao “Prado ou Prato” que, infelizmente, ainda não foi objeto de um verdadeiro estudo de impacto da parte da Comissão, pese embora o estudo recente do JRC que, a par de outros estudos, aponta para uma menor produção na União Europeia, eventualmente no pior cenário, segundo outros estudos, deixaremos de ser exportadores líquidos de cereais para importadores o que seria dramático para Portugal.

Em resumo, todos os estudos conhecidos concluem que o esforço que vai ser feito para se atingirem as metas até 2030 talvez não compensem o sacrifício exigido à cadeia agroalimentar, a menos que existam apoios suficientes para a transição, o reconhecimento do setor na valorização dos ecossistemas e no território e a disponibilidade dos consumidores para pagarem os custos desses produtos, distinguindo os “valores europeus” dos seus congéneres importados dos Países Terceiros. Esse será um outro debate…não menos urgente.

Mas é a propósito dos consumidores, dos preços e do funcionamento da cadeia alimentar que deixamos nestas Notas da Semana as nossas profundas preocupações porque temos de cuidar do curto prazo antes de preparar o médio e longo prazo.

E o curto prazo é dramático para o setor da pecuária e naturalmente para a indústria da alimentação animal que se confronta com preços de matérias-primas em alta e preços dos produtos animais cada vez mais reduzidos – em todos os subsetores – , amplificados pelas estratégias recentes da grande distribuição, com promoções em contraciclo, que estão a contribuir para criar uma enorme pressão nas produções de carnes, leite e ovos, com uma evidente degradação na cadeia de valor.

Sabemos que existe um excesso de produção na União Europeia, que a China está a retrair as suas importações de carne de porco, mas continua a comprar matérias-primas no mercado mundial, que as promoções nos hipermercados são essenciais para manter o negócio, que existe uma concorrência entre as diferentes insígnias e que estamos perante consumidores com reduzido poder de compra e, infelizmente, a situação tenderá a piorar com o fim das moratórias. E que os Governos têm horror à inflação pelas consequências macroeconómicas e sobretudo numa altura de eleições, do anúncio da bazuca ou a discussão do orçamento.

A IACA tem denunciado o impacto dos preços das matérias-primas na pecuária e vai continuar a fazê-lo com a presidência da Eslovénia, junto do Governo português e em todos os fóruns em que tiver de ser ouvida. Infelizmente, devido ao preço dos fretes, procura em alta, stocks curtos, mercados físicos que não corrigem os futuros, compras da China ou tensões comerciais, as matérias-primas e os ingredientes para a alimentação animal vão continuar altistas e os custos de produção não irão dar sinais de descida. Acrescem ainda os custos da energia, nomeadamente a eletricidade que constituem um absurdo, quiçá um atentado, penalizando todo o Setor.

Como vai ser possível resistir nesta conjuntura com os preços que estão a ser praticados pela grande distribuição alimentar?

Recentemente, na Agroglobal, num evento sobre as perspetivas dos mercados das matérias-primas disse uma frase que chamou a atenção de uma jornalista para uma entrevista “com estes preços do milho estamos condenados ao empobrecimento”, uma vez que na qualidade de grandes consumidores de cereais, se não conseguirmos transferir os acréscimos de custos para a cadeia alimentar, não é possível viabilizar a atividade, estando condenados a desaparecer. E aí regressamos à questão da nossa soberania alimentar.

Não sei se as empresas ligadas à grande distribuição desconhecem esta realidade e a situação de milhares de fornecedores que estão confrontados com uma redução de margens porque os custos não estão a ser refletidos ao longo da cadeia alimentar. Se esta situação se prolongar, teremos falências e despedimentos e não vale a pena a promoção de que cada vez mais se compram produtos nacionais se tal não significar manter os fornecedores portugueses sustentáveis porque as empresas têm de ser viáveis.

Baixar preços na conjuntura atual não só é insensato como chega a ser ofensivo.

E se uma parte importante da cadeia alimentar não olha para os seus fornecedores como verdadeiros parceiros do negócio, então temos de questionar se a legislação atualmente em vigor será suficiente (ou quem terá a legitimidade, pese embora defendamos a economia de mercado) para travar estes ímpetos.

A degradação da cadeia de valor não pode ser a solução para o pós-pandemia!  

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA

O artigo foi publicado originalmente em IACA.


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