A semana que agora termina fica marcada, a nível nacional, pelo retomar do trabalho do Grupo de Acompanhamento e Avaliação das Condições de Abastecimento de Bens nos Setores Agroalimentar e do Retalho em Virtude das Dinâmicas de Mercado, na linha das posições defendidas pela IACA pela FIPA, devido à manutenção das preocupações com os preços altistas das principais matérias-primas e com os constrangimentos subsequentes. Na conjuntura interna dá-se também início à discussão pública do PEPAC, a partir desta tarde.
No plano externo, emergem os rescaldos da COP 26 em Glasgow. A União Europeia reforça a ambição de liderança no combate às alterações climáticas, procura agir e não reagir, intervindo na produção dos países exportadores, através da legítima “intervenção por via do mercado” e adota, como estava previsto, a 17 de novembro, um conjunto de propostas que consolidam o Pacto Ecológico Europeu e as Estratégias da Biodiversidade e “Do Prado ao Prato”.
As propostas agora adotadas terão naturalmente de passar pelo escrutínio do Conselho e do Parlamento Europeu e, certamente, cada uma delas – seja ao nível do solo, da promoção da economia circular ou do combate à desflorestação – terá algum tipo de impacto no PEPAC português, seja no primeiro pilar referente a ajudas ligadas e regimes ecológicos, ou no segundo, no quadro das medidas de desenvolvimento rural, políticas de coesão e preços das matérias-primas.
E até aqui…tudo bem, mas…
A questão principal está na execução destas boas intenções. O detalhe das propostas, dos apoios para a transição e, não menos importante, a forma como os países terceiros lidarem com esta “ingerência” nas suas políticas e territórios, determinarão se vamos ser mais dependentes ao nível do aprovisionamento ou menos competitivos na fileira agroalimentar, no mercado interno e nas exportações.
Fixemo-nos, por exemplo, na desflorestação e na proposta de um novo regulamento para reduzir a degradação florestal.
De acordo com os dados disponíveis, entre 1990 e 2020, o planeta perdeu 420 milhões de hectares de floresta. As propostas da Comissão visam garantir que os produtos que os cidadãos europeus poderão consumir não contribuem para a desflorestação nem para a degradação florestal a nível mundial, tendo como adquirido que o principal impulsionador destes processos é a expansão agrícola associada a certos produtos de base — soja, carne de bovino, óleo de palma, madeira, cacau e café — e a alguns dos seus produtos derivados.
A proposta da Comissão abrange a desflorestação legal e ilegal, não fala em segregação, mas numa rastreabilidade a 100%. Irá impor auditorias jurídicas para comprovar que as matérias-primas são provenientes dessas áreas e reforçará os meios de controlo aduaneiro, estando previstos 16,5 milhões de euros para os primeiros cinco anos da sua implementação, entre 2023 e 2027. Vão ser tomadas medidas para a proteção dos povos indígenas no acesso à terra e a proteção dos ecossistemas, em cooperação com os governos locais, à luz, espera-se, dos acordos internacionais.
A pedra angular desta nossa opinião semanal resume-se no seguinte: se esta legislação não for implementada com bom senso, reconhecendo-se as especificidades de cada país exportador, corre o risco de criar disrupções nas cadeias de abastecimento, onerando ainda mais o preço da soja, que como aqui já referimos, não tem alternativas sustentáveis, por enquanto, no mercado europeu. As proteaginosas (os insetos, algas, farinhas de carne…) podem ser consideradas, mas a substituição a 100% é uma perfeita miragem, pelo que ainda estaremos a falar de um mercado de nichos, por falta de escala e menor competitividade.
Infelizmente, a Comissão Europeia parece não ter acolhido a posição expressa pelas principais organizações da cadeia agroalimentar, que alertaram para a complexidade do problema e eventuais impactos negativos. Naturalmente, vamos continuar a insistir e a explicar melhor o modelo instituído junto da DG ENVI, da DG AGRI, do Conselho, dos Estados-membros e do Parlamento Europeu.
Fá-lo-emos, ao mesmo tempo em que continuamos fiéis à implementação de soluções, nomeadamente, ao Guia de Aprovisionamento de Soja responsável , lançado pela FEFAC em 2015, envolvendo ITC, uma entidade da OMC, e o apoio financeiro do IDH, e do qual muito nos orgulhamos. Por causa dele existem já hoje 15 sistemas de produção de soja responsável que é reconhecida pela cadeia de abastecimento, incluindo os retalhistas a nível mundial. Cerca de 40% da soja que é consumida na União Europeia é responsável de acordo com o Guia FEFAC, e 80% é proveniente de zonas de baixo risco ou mesmo risco nulo de desflorestação.
Mas, infelizmente, a implementação destas soluções que contribuem para o desiderato de a UE importar menos soja “irresponsável”, pode não contribuir para o seu objetivo inicial, ou seja, conter a desflorestação.
Temos muitas dúvidas de que os mercados que concorrem com a Europa nos produtos finais deixem de a integrar nas suas produções, abdicando de serem competitivos. Então, a UE “lavará” as suas mãos, com a “(in)consciência” do dever cumprido.
Como “verdadeiros” líderes de causas, não teremos quaisquer problemas em importar carnes, leite ou ovos provenientes de animais alimentados com matérias-primas de regiões não conformes com a legislação. para que os cidadãos com menos poder de compra tenham acesso a alimentação.
Para que esta discussão seja séria há uma variável que não nos cansamos de recordar: a disponibilidade para adquirir produtos sustentáveis, cujos preços, de acordo com os estudos já conhecidos, tenderão a aumentar em níveis significativos.
Mas nada disso importa porque se legisla, supostamente, no interesse dos consumidores e dos cidadãos.
De preferência dos ruidosos.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
O artigo foi publicado originalmente em IACA.