Seria importante clarificar, de uma vez por todas, junto dos decisores políticos e da opinião pública e publicada, que a sustentabilidade não deve estar ligada estritamente às questões ambientais e das alterações climáticas, mas que deve ser um equilíbrio entre as componentes ambiental, económica e social.
Numa altura em que vivemos uma sociedade claramente mediática, seja pelos media clássicos, ou através das redes sociais, temos uma espécie de “rolo compressor” que nos empurra para soluções simplistas, politicamente corretas, ignorando que as políticas públicas devem ser coerentes, se possível integradas e, sobretudo, com avaliação do seu impacto, para que a Sustentabilidade seja um motor efetivo do desenvolvimento, de uma empresa, território ou de um País.
E, em clima de guerra, de incerteza e volatilidade, com inflação e elevadas taxas de juro, uma crise energética, a par da “emergência ambiental” – não estamos a negar as alterações climáticas e o combate que todos devemos travar para as mitigar – o impacto e monitorização das políticas ainda é mais relevante, sob pena de criarmos maiores disrupções nas cadeias de abastecimento. Mais e melhor informação e transparência sobre as políticas públicas e a sua integração no espaço europeu é necessária. De facto, não somos uma ilha, vivemos num mundo global, mas bipolar, que, pese embora as tentativas recentes de protecionismo, continuará a ser globalizado.
Por outro lado, quando atingimos os 8 mil milhões de habitantes no nosso planeta, que vão viver mais anos e, assim o esperamos, melhor que as gerações anteriores, é inegável que a União Europeia (e Portugal) tem de ter a ambição de desempenhar um papel ativo e não irrelevante, para ser levado a sério no abastecimento alimentar a nível mundial.
As exportações não são apenas produtos, são igualmente conceitos e valores, especificidades e diversidade que todos queremos preservar e desenvolver. É essa diversidade um dos pontos fortes da União Europeia, a par de regras de higiene e segurança alimentar, ambiente, saúde e bem-estar animal sem paralelo à escala mundial.
Vem tudo isto a propósito do recente acordo político provisório alcançado entre o Parlamento Europeu e o Conselho sobre um regulamento da União Europeia (UE) relativo às cadeias de abastecimento de produtos não associados à desflorestação que teve lugar no dia 6 de dezembro, com o simbolismo de ser na véspera da Conferência da ONU sobre a Biodiversidade (COP 15), conferência esta que decorre até dia 19, em Montreal, no Canadá.
Com esta nova legislação, uma vez que o acordo será seguramente ratificado, pretende assegurar-se que, quando os produtos de base (óleo de palma, bovinos, soja, café, cacau, madeira e borracha) e os seus derivados são adquiridos, os consumidores não estão a contribuir para a maior degradação dos ecossistemas florestais. Os direitos humanos, nomeadamente dos povos indígenas, são igualmente reconhecidos e protegidos.
Obviamente que o objetivo final é o de minimizar o risco de desflorestação e degradação florestal associado aos produtos importados para a UE ou exportados a partir da UE. E neste princípio todos estamos de acordo, sobretudo porque o conceito de “desflorestação” tem por base a definição da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO),
As diligências para a implementação desta legislação tiveram início no dia 17 de novembro de 2021. No final de 2022 a Comissão Europeia congratula-se, naturalmente, com este resultado, mas o facto é que nenhuma das instituições europeias, pese embora tenham incorporado algumas das nossas sugestões, conseguiu dar resposta a questões relevantes que também colocámos, nomeadamente no que respeita à forma como será operacionalizada, monitorizada e controlada esta legislação, isto para não falar das dúvidas que temos relativamente à sua exequibilidade.
Acresce às questões anteriores uma outra: a relação com os países exportadores. Como se harmoniza esta legislação com os seus direitos e leis nacionais, qual a compatibilidade deste diploma com as regras do comércio livre, no quadro dos acordos da Organização Mundial de Comércio. Este ponto não é de menor importância, sobretudo se tivermos em linha de conta, por exemplo, a dependência europeia (e portuguesa) da soja, do cacau ou do café.
Entretanto, a FEFAC/COCERAL/FEDIOL emitiram uma comunicação em que reconhecem os esforços para fechar rapidamente o acordo e definir uma estrutura ambiciosa da UE em matéria de desflorestação.
Em linha com a FEFAC, que representa a indústria de alimentação animal da UE, em nossa opinião, o acordo tem aspetos positivos como o menor nível percentual de verificações/controlos para países de mais baixo risco, assim como o facto de o milho não ter sido incluído, até existir uma avaliação mais aprofundada. Lamentamos, no entanto, que os exigentes requisitos de rastreabilidade e “cadeia de custódia”, cuja definição ainda é ambígua, possam levar ao desaparecimento de pequenos produtores, naturalmente mais vulneráveis nas cadeias produtivas. O não estabelecimento de incentivos e apoios não ajudará a superar os impedimentos legais, organizacionais ou logísticas que irão surgir. A questão das auditorias jurídicas (“due diligence”) é um outro problema que tende a gerar mais custos, pelo que o processo deverá ser o menos burocrático e mais flexível que for possível.
Por último, assinalamos também como desafiante o timing da sua implementação, em princípio no final de 2024, tempo que pode não ser suficiente para que exista um período de transição e adaptação. A urgência, depreendemos, terá a ver – neste caso, como em outros processos emblemáticos, designadamente no “Farm to Fork” – com o facto de esta Comissão, tal como o Parlamento Europeu, querer deixar a sua marca antes do fim do Mandato.
As ONG congratularam-se, largamente, com o acordo enquanto primeira legislação mundial sobre cadeias de abastecimento sem desflorestação, criticando ao mesmo tempo a ausência de mais disposições sobre direitos humanos, proteção de outras terras arborizadas e instituições financeiras.
Curiosamente, não vimos nestas posições qualquer referência ao normal funcionamento das cadeias de abastecimento para a soberania alimentar, para a sustentabilidade nas vertentes de que falámos (social e económica, além da ambiental), nem para uma cooperação entre a União Europeia e os seus parceiros no mercado mundial e, tão ou mais importante, não demos conta de posições acerca da não existência de exigências semelhantes na importação de carne de suínos ou de aves de países, nos quais estas espécies podem ser alimentadas com matérias-primas provenientes de zonas desflorestadas.
Dito isto, também é facto que, infelizmente, uma área maior do que a União Europeia foi desflorestada entre 1990 e 2020. Os países europeus foram responsáveis por 10% das perdas, por via do consumo dos produtos com origem em desflorestação. É evidente que devemos tomar medidas, mas esta (má) consciência europeia não deve ignorar o funcionamento das cadeias de abastecimento, as regras do livre comércio e o impacto desta política que, à primeira vista, contribuirá para criar mais custos e restrições, onerando ainda mais os preços das matérias-primas e os preços dos produtos alimentares, ou seja, contribuindo para a perda de competitividade das empresas europeias.
A opção será legislar com cuidado, auscultando os representantes dos setores, ambientalistas, mas também os congéneres nos EUA, Brasil, Argentina ou tantos outros, na Ásia ou em África.
Depois de dois anos de pandemia e de um ano de guerra, sem fim à vista, o pior que nos poderia acontecer seria a existência de mais tensões e conflitos comerciais.
E, ainda pior, que um certo fundamentalismo ambientalista, que tende a colocar a União Europeia nos píncaros dos avanços mundiais em matéria ambiental – pelo menos no discurso – seja relegada, ainda que injustamente, para uma relativa irrelevância nas relações geopolíticas.
Essa não é certamente a Sustentabilidade que todos ambicionamos.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA