Jaime Piçarra

Notas da Semana – Pouco trigo em muito joio: é urgente o debate sobre o agroalimentar – Jaime Piçarra

A semana que hoje termina ficou marcada por um conjunto de eventos, adoção de estratégias e, mais uma vez, inverdades, até do ponto de vista científico, que geram sentimentos contraditórios e uma profunda demagogia e populismo de que aqui falámos na semana passada.

Desta vez prestada pelo serviço público no programa “Linha da Frente” da RTP, exibido no dia 25 de fevereiro, intitulado “E se nós falássemos”, uma incursão sobre o bem-estar animal, partindo do pressuposto de que os animais terão os mesmos sentimentos dos humanos e que as empresas ligadas à pecuária estão a maltratar os animais de criação, com práticas “desumanas”.

Numa sociedade à procura de novos rumos (valores?) e, infelizmente, cada vez mais solitária e egoísta, felizmente com acesso fácil a todos os tipos de alimentos, em que tudo parece simples de resolver, humanizar os animais, desumanizar os humanos parece ser a palavra de ordem.

E voltamos a ter o ruído e a manipulação da informação, sem o contraditório, com vídeos manipulados por movimentos ativistas, ditos de defesa dos animais, que não retratam a realidade. E esses exemplos, os maus exemplos, as más-práticas, têm de ser fiscalizadas e os responsáveis severamente punidos pelas autoridades.

Um péssimo serviço da RTP que tinha a obrigação de fazer um programa sério e honesto sobre o bem-estar animal e o que de bom fazemos na atividade pecuária em Portugal, o que evoluiu nos últimos anos e o que estamos a construir, em nome da sustentabilidade e do bem-estar animal. De mente aberta, sem hipocrisia ou demagogia, e fica aqui lançado o desafio público.

Como profissional, senti-me revoltado porque conheço o Setor. Como cidadão, indignado com a qualidade da reportagem, sem contraditório, e entrevistas editadas, para nos fornecer um guião e uma narrativa que, felizmente, e é fácil de mostrar, não é a realidade do nosso País.

Infelizmente, a RTP não se preocupa com o que de bom se faz na nossa agricultura e pecuária, a preocupação com a inovação, investigação, tecnologia, economia circular, clima e sustentabilidade, eficiência na utilização de recursos e sim, o bem-estar animal, que preocupa naturalmente os produtores pecuários, a indústria de carnes e da alimentação animal ou os transportes. Sim, porque sem bem-estar não temos animais sãos, saudáveis e produtivos, de acordo com os objetivos que se pretendem.

Desde o nascimento ao abate, o transporte, em condições legais de acordo com os padrões europeus, dos mais exigentes a nível mundial.

E do ponto de vista económico, a atividade pecuária representa cerca de 45% do volume de negócios do agroalimentar, gera riqueza em termos económicos e sociais, cresceu em exportações, aposta na sustentabilidade, é importante para a ocupação do território, para o bem-estar dos humanos, em regiões que, sem a pecuária, não teriam alternativas de subsistência e vai ao encontro das necessidades dos consumidores.

Sim, o bem-estar animal, o ambiente e a sustentabilidade são prioridades e apostas estratégicas.

Se a RTP estivesse mais atenta, teria informado os cidadãos de alguns prémios que tiveram lugar este mês, nomeadamente os Prémios do Crédito Agrícola, no dia 4 de fevereiro, ou o Prémio Nacional Agricultura 2020 (Grupo Cofina/BPI), de 24 de fevereiro, nos quais foram distinguidos empresários e empresas responsáveis, em áreas tão diferentes como a agricultura, a floresta, a agroindústria, a pecuária e temas como a inovação, exportação, jovens agricultores, digital, sustentabilidade e uma personalidade do ano, que representa  um grupo do setor agroalimentar que, como tantos outros, se reinventou ao longo dos tempos e que honrou a sua história e olha para o futuro.

Se a RTP estivesse mais atenta ter-se-ia preocupado com o debate que o setor está a fazer em torno de temas tão importantes como a Indústria 4.0, a digitalização, as alterações climáticas, a inovação, a distribuição alimentar e a logística, os desafios da Sociedade, a estratégia “Do Prado ao Prato”.

Na mesma semana em que foi exibido este programa foi lançada, igualmente, a estratégia da Comissão Europeia para o clima, o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) entrou em consulta pública, e teve lugar hoje uma Conferência promovida pela presidência portuguesa sobre alterações climáticas.

Portugal afirmou a sua prioridade ao nível da neutralidade carbónica para 2050, relevando o seu pioneirismo na União Europeia, bem como as metas mais ambiciosas no horizonte 2030.

Os acontecimentos desta semana, bem como os dados apresentados nesta conferência deixam claro algo que todos já sabemos:  temos de mudar. As mudanças exigem-se na forma como negociamos, na transparência que aí aplicamos, nas relações entre o publico e o privado, , nos comportamentos, nos modelos de governação, na produção e consumo, na economia circular, no combate ao desperdício e na utilização deq energias renováveis que criarão novas oportunidades numa economia verde. Isso deverá acontecer não só na União Europeia, mas à escala global.

Como aqui já escrevemos, nada a apontar quanto aos objetivos, com os quais nos identificamos, mas apenas à velocidade na sua implementação e à falta de apoios para que se concretize o slogan “não deixar ninguém para trás”

Não deixar ninguém para trás implica que a Agricultura, o setor agroalimentar e os seus agentes não podem ser encarados como descartáveis ou como alvos fáceis de diabolização. Encontrar culpados é fácil, é tentador, mas não resolve um problema que deve ser encarado com ciência e sem demagogia. Infelizmente encontramos alguma ciência e muita demagogia neste debate. Também o ouvimos hoje na referida Conferência, promovida pela Presidência Portuguesa. As críticas relativamente à utilização de água no Alqueva e os repetidos argumentos contra as produções intensivas (olival, pecuária…) que, por acaso (?), nos ajudam a bater recordes de exportação e que – sei por experiência própria, até pelo preço da água – são eficientes na utilização de recursos.

No entanto ao olharmos para o PRR e quando, ao longo da pandemia, o setor agroalimentar foi destacado pela sua resiliência – numa altura em que em Bruxelas discutimos o Plano de Contingência da União Europeia – , parece que esta área não tem a dimensão que devia. Há que criar as condições para que surjam, definitivamente, mais empresários como os milhares que se candidataram aos prémios que já referimos.

Temos empresários responsáveis, empenhados e dedicados, de excelência, que todos os dias se reinventam e dão a energia que este País precisa para a recuperação e querem ser parte da solução.

Não precisamos de ouvir diariamente uma narrativa que os tenta denegrir, manipulada por uma cegueira ideológica e que se alimenta das redes sociais e de uma certa impunidade e que, pelos vistos, a RTP, o serviço público, acarinha e potencia.

Nunca como hoje foi tão necessário um debate aberto e urgente com toda a Sociedade, incluindo o Governo, parceiros sociais e o Presidente da República. Não é possível ter, como hoje acontece, num debate com estas implicações, demagogia travestida de ciência. Temos pouco trigo em muito joio…

Debatam-se as questões baseadas em dados científicos e, sem medos, façamos uma verdadeira reflexão sobre o que queremos em Portugal para a Agricultura e para o Agroalimentar.

Jaime Piçarra
Secretário-Geral

O artigo foi publicado originalmente em IACA.


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