Jaime Piçarra

Notas da Semana – Ventos de Mudança? – Jaime Piçarra

Numa altura em que entramos numa fase decisiva do combate à pandemia, com a esperança nas vacinas para o regresso a uma normalidade possível, vale a pena refletirmos sobre a biotecnologia na agricultura e o que podemos esperar, tendo em conta as lições a retirar da COVID-19, da agenda política e algumas “movimentações” recentes que ocorreram na Europa.

Creio que é consensual concluir, para além da resiliência e da cooperação global no funcionamento da cadeia alimentar, humana e animal, que a Ciência e a aposta na investigação e inovação, foram os aspetos que mais marcaram o ano de 2020 e marcarão certamente os próximos.

Nunca na história da humanidade tantos meios humanos e financeiros foram disponibilizados para um objetivo comum, numa cooperação à escala global, entre público e privado, o que permitiu encontrar uma vacina num tempo record, ultrapassando as burocracias e entraves habituais nestes processos. Por outro lado, os decisores políticos passaram a ouvir os cientistas e, tanto quanto possível, as decisões foram (e vão sendo) tomadas com base em evidências científicas.

Esta pode ser uma marca do pós-pandemia e é desejável que assim seja – a aposta no conhecimento e em evidências científicas – tal como são a digitalização, a sustentabilidade ou o combate às alterações climáticas.

O que tem isto a ver com a biotecnologia?

Sem entrar em grandes explicações científicas, as vacinas que temos disponíveis e que são a grande esperança no combate a este pesadelo, foram desenvolvidas com o recurso à mesma estratégia que é utilizada pela engenharia genética para produzir os OGM que protegem as culturas contras vírus, fornecendo trechos de RNA que bloqueiam a síntese de proteínas que são essenciais à multiplicação viral. É esta tecnologia do RNA/DNA recombinante que permite produzir variedades cultivadas que são atualmente utilizadas em quase 15% da área arável do planeta.

De resto, a utilização da biotecnologia em medicina e noutros setores nunca foi um problema para a sociedade, contrariamente à sua utilização na agricultura, que, sobretudo na União Europeia, tem sido uma verdadeira “via sacra” nos últimos 20 anos.

Provavelmente porque os OGM surgiram num período de crises alimentares (BSE, dioxinas), numa Europa em transformação, de cidadania, e de maior intervenção de grupos ambientalistas, radicais e anti-globalização, com alterações no funcionamento da Comissão Europeia.

Por exemplo, a alimentação animal passou da DG AGRI para a DG SANTE, o Parlamento Europeu assumiu um peso crescente, a saúde e a segurança alimentar, para além do ambiente, começaram a estar mais presentes, hoje todos somos escrutinados e mais expostos, e certamente devido a uma política de comunicação errada, que permitiu que este dossier (que não se resume aos OGM) fosse cada vez mais mediatizado e politizado, assumindo, erradamente, um vínculo não raras vezes ideológico.

E, como todos sabemos, a perceção é o que tem contado, verdadeiramente, para os decisores políticos.

Entretanto, perdemos o Reino Unido como aliado nos processos de decisão das aprovações. Libertos das “amarras” da legislação europeia, encontram-se neste momento em consulta publica para a tomada de decisões, nomeadamente as novas técnicas genómicas, as chamadas NGT na sigla inglesa.

Ainda este ano, a Polónia, que tinha preparada legislação para proibir as importações de matérias-primas GM, adiou a sua entrada em vigor porque percebeu que não era possível a alimentação dos animais sem a soja ou o milho que, nos nossos principais fornecedores, são maioritariamente geneticamente modificados. E, o mais importante, são aprovados pelas autoridades científicas, com parecer favorável da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA).

Pelas mesmas razões, para evitar disrupções no abastecimento da cadeia alimentar, a Comissão Europeia autorizou recentemente a importação de mais 8 eventos.

Em Itália, antes da queda do Governo, ia ser lançado um debate público sobre estes temas, que contou com uma forte oposição dos ambientalistas e dos detratores da biotecnologia. Em França, o Ministro da Agricultura está a evitar a entrada em vigor de um Decreto que engloba as novas técnicas de melhoramento na legislação sobre os OGM até que seja publicado um estudo encomendado pela Comissão Europeia sobre as NGT, na sequência de uma consulta pública às partes interessadas e de uma orientação clara de muitos Estados-membros, entre os quais Portugal.

Prevê-se que o estudo seja apresentado em abril e discutido no Conselho Agrícola.

Por outro lado, ao não ser clara quanto ao papel da biotecnologia, a agenda política parece contrariar a aplicação das NGT na estratégia “Farm to Fork”, na Terra Futura, ou na aposta num desenvolvimento sustentável, que poderá, assim, contar com mais uma  ferramenta, inovadora, aprovada do ponto de vista científico, ao serviço de uma agricultura e alimentação animal que se pretendem de precisão, eficientes na utilização dos recursos, que produzam alimentos mais seguros do ponto de vista microbiológico e nutricional.

São incontáveis os estudos e declarações de reputados cientistas que atestam que os eventos GM são tão seguros quanto os convencionais, incluindo da EFSA, mas o facto é que na União Europeia, apenas Portugal e Espanha têm o cultivo do milho geneticamente modificado, um evento mais do que obsoleto. A produção de soja GM continua a ser proibida em todo o espaço da UE.

A nível mundial a situação é bem diferente (ver o último relatório International Service for the Acquisition of Agri-biotech Applications – ISAAA.org) , com a biotecnologia a chegar a 29 países, em 14 culturas diferentes, beneficiando 26% da população mundial, países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento e milhares de pequenos agricultores.

É esta “miopia” política e negacionista que pessoalmente me incomoda.

Como me incomoda a oposição dos que querem destruir esta tecnologia (que tem um enorme potencial em muitas áreas, veja-se o CRISPR, , destruindo qualquer tentativa de apostar em mais investigação e desenvolvimento tão necessários para se passar por uma malha apertada de autorizações, com base em evidências científicas.

Para além do estudo sobre as NGT, temos ainda mais 2 dossiers importantes que podem determinar o caminho a seguir: a revisão da Comitologia e as regras de transparência exigidas pela EFSA, estas podem desencorajar a inovação (e não é apenas na biotecnologia) revertendo a lógica de “aprovar quando seguro” para “aprovar apenas quando é popular”.

Se tivermos em conta a crescente política de subsidiariedade – este é um dossier que a Comissão Europeia quer devolver aos Estados-membros, que não se entendem – então o debate e a reflexão em Portugal ainda é mais premente. Com mais ciência e menos ideologia. Sobretudo, com menos ruído.

Para nos situarmos no tempo e constatarmos como muito pouco mudou nos últimos anos, recordo aqui um texto que escrevi em abril de 2009 publicado no Agroportal “Coragem ou Hipocrisia e que, infelizmente, está bem atual.

Mais de uma década depois, a escolha vai ser entre coragem ou hipocrisia e cada país, desde logo o meu País, tem de assumir as consequências e as responsabilidades.

Gostaria de ver coragem e não hipocrisia, decisões com base científica e, sobretudo, liberdade para utilizadores e consumidores, decidirem, com informação e em consciência.

Em nome de uma Sociedade moderna, inovadora e competitiva.

Jaime Piçarra
Secretário-Geral

O artigo foi publicado originalmente em IACA.

Notas da Semana – Passos seguros para a sustentabilidade – Jaime Piçarra


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