Notícias – Henrique Pereira dos Santos

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Fui buscar o boneco acima a uma publicação de um colega meu do Algarve, que perguntava ironicamente onde é que já se tinha visto floração de amendoeiras no Inverno.

Que o Público não tenha ninguém com sensibilidade suficiente para ter ouvido falar da auto-fecundação das amendoeiras (e, por isso, da relativamente baixa importância dos polinizadores nesta cultura, pelo menos nalgumas variedades), acho normal, eu só soube disso porque Carlos Aguiar fez um comentário nesse sentido na dita publicação.

Que uma estagiária leia qualquer coisa sobre o assunto e não tenha capacidade crítica suficiente para se aperceber imediatamente que é melhor verificar os factos e ver quando é a época normal da floração das amendoeiras, posso perceber, é caindo que se aprende a andar de bicicleta.

Que no processo de produção da notícia, e mesmo depois da sua publicação, ninguém com responsabilidade no jornal se aperceba de que não há notícia nenhuma no facto de começar a floração das amendoeiras em Fevereiro, isso sim, já acho preocupante (noutra publicação, nos dias de frio que houve aqui a atrasado, uma pessoa de Mirandela perguntava em que país vivia a ou o jornalista que tinha feito uma notícia com o facto da roupa que tinha ficado na rua a secar, de um dia para o outro, ter congelado na corda).

Neste caso trata-se apenas de um lapso divertido, mas este desfasamento entre a realidade do mundo rural e os produtores de informação é muito mais sério do que se poderia pensar, influenciando políticas erradas de gestão de fogos, de gestão florestal, de gestão de conservação e por aí fora, o que tentarei exemplificar com outro exemplo recente, também vindo do Público.

Ontem, na primeira página, numa chamada com algum destaque, escrevia-se “Lobos Doze ministros europeus contra  redução de estatuto de protecção”.

Quando vi esta chamada, disse para os meus botões: o jornalista, ou o editor, ou o jornalista e o editor, não perceberam que a notícia é serem só doze os que assinaram a carta que pretende contestar uma resolução do parlamento europeu sobre grandes carnívoros: há uns anos atrás esta resolução provavelmente nunca existiria, e praticamente todos os ministros europeus assinariam imediatamente a sua contestação, no caso, improvável, de alguém se atrever a propor uma medida neste sentido.

Afinal o que se passa?

O que se passa é com as alterações tecnológicas que nos permitem hoje criar fertilidade em fábricas, produzir muito mais trabalho com menos gente, escolher as caracteríticas de plantas e animais para obter melhores resultados, com a melhoria dos circuitos de armazenamento e comercialização (com destaque para a generalização do frio), com melhores modelos de gestão, precisamos hoje de muito menos terra para alimentar (e produzir fibras) muito mais gente.

Com isso, na velha Europa – a situação não é a mesma noutras paragens -, há uma recuperação brutal dos sistemas naturais e, com isso, o regresso dos grandes animais, que incluem predadores de topo como o lobo ou omnívoros oportunistas como o urso.

Todos os dados que existem apontam nesse sentido, de que há um conjunto de espécies que estiveram muito ameaçadas mas que hoje aumentam a taxas mais altas ou mais baixas mas, para se ter uma ideia, os ursos, na Península Ibérica, cresciam até há pouco tempo a uma taxa de 10% ao ano (digo cresciam, e não crescem, por precaução, não fui ver os últimos números). Isto quer dizer que a população de ursos duplica a cada 7 ou 8 anos, ou que triplica em 11 ou 12 anos.

Isto deveria ser motivo de regozijo dos conservacionistas, só que isto implica reconhecer que essas espécies não estão ameaçadas, ou seja, que o seu estatuto de ameaça deveria ir tendendo para não ameaçado, progressivamente, a cada revisão desse estatuto.

Ora é isso que pede a tal resolução do Parlamento Europeu, só que isso choca de frente com a convicção de que o estatuto legal de protecção das espécies é uma coisa muito importante para a sua dinâmica, um dogma de fé transversal a praticamente todo o movimento conservacionista e, consequentemente, às redacções dos jornais.

Daí a notícia do Público, que não discute os fundamentos do problema, não escrutina factos, ouve apenas uma pessoa, dirigente de uma organização directamente interessada em dramatizar as ameaças às espécies em causa, porque dessa dramatização depende o financiamento, em grande parte, da organização.

O que está em causa não é produzir informação, é combate político.

Se é assim numa matéria aparentemente tão pouco política, imagine-se o que isto quer dizer em matérias mais claramente políticas, como a habitação.

Um dia destes vi uma jornalista perguntar a um convidado como era possível que se admitisse que se poderia resolver a crise da habitação sem intervenção do Estado.

E considera-se a pergunta normal porque ninguém devolve a pergunta à jornalista: onde está a demonstração real de que a intervenção do Estado produz melhores resultados na disponibilidade de habitação que o mercado? Que exemplos existem de intervenções do Estado com bons resultados, no longo prazo, sobretudo intervenções do Estado que contrariam o mercado (que é diferente de políticas de incentivo para que o mercado funcione mais assim ou mais assado).

E assim não saímos da cepa torta.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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