O drama, o horror: ele tem uma empresa

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Os conflitos de interesse são uma coisa séria, mas não substituem a lei.

Agora é porque Montenegro tem uma empresa que no seu objecto social tem uma actividade que, em tese, pode beneficiar de uma alteração à lei.

É possível que a empresa beneficie disso? É.

É plausível que a empresa beneficie disso? Não.

Não, por várias razões, algumas directamente relacionadas com a natureza da lei (aplica-se a uma percentagem ínfima de terrenos, em circunstâncias muito condicionadas, com processos de decisão complexos e abertos, envolvendo muita gente), outras com a dimensão do escrutínio a que é sujeito Montenegro (e a generalidade dos políticos com mais notoriedade), que transformaria qualquer tentativa de beneficiar da lei numa actividade de elevadíssimo risco (uma imprudência, portanto).

Para além de que o facto que pode gerar mais valias já existia (a transformação de solo rústico em urbano é trivial no processo de planeamento), apenas se alteraram alguns (poucos, na minha opinião) procedimentos, dispensando burocracia inútil.

Dir-se-á que o conflito de interesses não depende de se materializar, é um risco que tem de ser acautelado.

Sim, é verdade, é por isso que não é ilegal haver conflito de interesses, pode ser politicamente desastroso, pode ser eticamente discutível, pode ser desaconselhado em circunstâncias concretas, mas o conflito de interesses não pode ser levado a um extremo tal que um agricultor seja impedido de ser ministro da agricultura, o que deve acontecer é que o conflito de interesses deve ser explícito, tão transparente quanto possível, mas só a materialização real ou com elevada probabilidade, é que deve ser sancionada.

Infelizmente, em Portugal, frequentemente os populistas não gostam de empresas e empresários e basta a mera posse de uma empresa para desqualificar alguém para o exercício de cargos públicos, com base em descrições de ligações que, frequentemente, são meros devaneios.

Elvira Fortunato é das cientistas portuguesas mais premiadas e consideradas, com uma grande capacidade de mobilização de recursos para as suas equipas de investigação (isso não é um defeito, é uma grande qualidade).

Temporariamente foi ministra, com a tutela da área da ciência (ainda bem, à partida, eu ficaria mais preocupado se a tivessem nomeado ministra das finanças).

No exercício do cargo tomou decisões que, evidentemente, em tese, podem beneficiar os seus grupos de investigação (por exemplo, se forem reforçadas as verbas para a investigação, em tese, os seus grupos de investigação aumentam as probabilidades de ter mais recursos).

Depois do exercício do cargo, voltou tranquilamente para a sua carreira de investigação.

Há conflito de interesse?

Sim, parece-me uma evidência.

Isso deve impedir ou condicionar fortemente a sua escolha para ministra com a tutela da ciência?

Não, parece-me uma evidência.

Que se escrutine as decisões de tomou e que se avalie em que medida os seus grupos de investigação (e, consequentemente, ela própria) foram desproporcionalmente beneficiados, acho natural e benéfico.

O que não faz o menor sentido é fazer coisa diferente quando em vez de ser um académico, um funcionário, ou um jornalista, está em causa uma pessoa que tem actividade privada ou faz (ou investe) em empresas.

Ou melhor, faz sentido para os populistas, para mais ninguém.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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