O empresário sem cabeça – Henrique Pereira dos Santos

Por causa da sessão em que falei no meu último Post, José Miguel Cardoso Pereira mandou-me um slide de uma apresentação de há tempos, que transcrevo.

“6º Inventário Nacional (2015)

– o volume de madeira em crescimento (i.e. de árvores vivas) de pinheiro-bravo apresenta uma diminuição de 15 Mm3 em relação ao IFN anterior (2005, acrescentou eu), cifrando-se em 2015 no 67 Mm3

– o volume de madeira em crescimento de eucalipto mantém-se constante desde o IFN5 (43Mm3, apesar do aumento da área de cerca de 59 mil ha

– Ou seja, a disponibilidade de madeira de pinheiro-bravo está em diminuição e a de eucalipto não acompanha o aumento de área. (e as fábricas processam m3, não processam ha…)

Nota: estes números não reflectem as áreas queimadas entre 2016 e 2021, que foram cerca de 830 000 hectares de área total, dos quais ca 490 000 ha de povoamentos florestais”

Como é clarinho, clarinho, área de povoamento florestal não quer dizer metros cúbicos de matéria prima protencial, a área pode aumentar, como no caso do eucalipto, e os metros cúbicos ficarem na mesma.

O Estado, e nós como sociedade, olhamos para a produção florestal de uma forma que qualquer empresário consideraria estranhíssima, qualquer consultora assinalaria como um absurdo, se estivéssemos a falar de outra área de actividade económica: não distinguimos activos florestais de passivos florestais.

Tomemos o exemplo do eucalipto para ilustrar.

O país tem cerca de 850 mil hectares de eucalipto, mais coisa, menos coisa.

Desses 850 mil hectares, uns 200 mil são activos económicos, os outros 650 mil são passivos económicos.

Ou melhor, tal como uma sucata é um activo económico, também esses 650 mil hectares de eucalipto são um activo, na medida em que há uns sucateiros que vão lá andando à cata de qualquer coisa que se aproveite, compram ao preço de sucata, preparam para que seja aceitável como matéria prima à porta da fábrica, e vendem o que conseguem aproveitar ao preço de matéria prima, exactamente como faz qualquer sucateiro.

O que não faz sentido é a siderurgia que exista no país considerar uma mina de ferro (ou um fornecedor internacional de ferro) no mesmo plano de uma sucata, quando faz o seu plano de negócio e avalia as disponibilidades de matéria prima em qualidade, preço e segurança de abastecimento.

E não faz sentido porque alimentar siderurgias a partir de sucatas é um processo largamente ineficiente (a razão pela qual existe um negócio de sucata é porque os bens que entram na sucata tiveram outra vida económica e a sucata é uma melhor alternativa que o lixo, a originalidade do sector florestal é empenhar-se em produzir sucatas, sem o uso económico anterior do bem).

Esta é, actualmente, a forma como as entidades de tutela, os economistas, as consultoras olham para o sector florestal, discutindo acaloradamente hectares de povoamentos florestais em vez de discutir disponibilidades de metros cúbicos (eu sei, eu sei, dizem sempre qualquer coisa sobre produtividade e a necessidade de aumentar a produtividade, mas depois, na prática, empenham-se em “sinking investments” de passivos florestais porque não os distinguem de activos florestais).

No caso do Estado, por pressão da sociedade, a situação é ainda mais absurda porque a regulamentação se empenha, activamente, em limitar os activos florestais e em aumentar os passivos florestais, criando uma regulamentação kafkiana quer no que diz respeito à livre produção de espécies florestais, quer no que diz respeito à limitação de técnicas de gestão dos activos que existem, como no fogo controlado, no pastoreio, nos desbastes, nas podas, na forma de explorar a resina, etc., etc., etc..

Resumindo, gerimos o sector sem distinguir o que são activos do que são passivos, insistimos que os proprietários são uns broncos que não querem ganhar dinheiro expandindo os passivos florestais e, no fim, espantamo-nos porque o sector nunca consegue produzir o que dizemos que é o seu potencial, para além de produzir muito mais externalidades negativas do que estamos dispostos a aceitar.

Adenda: qualquer pessoa que leia uma alegoria à discussão actual sobre habitação está desculpada. No caso do sector florestal, os arrendamentos coercivos são já uma realidade legal. Felizmente, como irá acontecer na habitação, acho que a legislação nunca foi aplicada, quer porque habitualmente a realidade se impõe à legislação, mesmo que seja por ínvios caminhos, quer porque há um problema de ordem prática: ninguém percebe muito bem como se consegue arrendar coercivamente uma coisa não vivendo nós num regime autoritário.

O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.


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