No meu post anterior, fundamentei as minhas discordâncias sobre a importância das questões de propriedade para a definição de políticas públicas de gestão do fogo (voltarei ao assunto, há um relatório preliminar sobre o problema que merece atenção).
Neste post gostaria de falar na forma como o Estado, este ano, quis responder ao risco previsto com a diminuição das ignições.
Sobre outras questões relacionadas com ignições, sugiro que se vejam os posts que podem ser encontrados aqui.
Este ano, o risco meteorológico identificado era estratosférico e, bem, o Governo resolveu agir por antecipação, ao contrário do que tinha acontecido em muitos anos anteriores (2017, quer em Junho, quer em Outubro, é um bom exemplo da atitude anterior de agir depois do problema, mas também de como é arriscado confiar excessivamente em previsões meteorológicas: boa parte das ignições em Outubro de 2017 resultaram de queimas que confiaram na previsão de chuva associada ao Ofélia, mas esta previsão não se verificou, ficando apenas o vento fortíssimo, que transformou milhares de ignições num problema muito sério de gestão do fogo).
A doutrina em que assenta o que foi feito é a de que, identificado um risco daquele nível, com dias de antecedência, a única coisa a fazer seria reduzir ignições para evitar a dispersão de meios, o que permitiria atacar os fogos nascentes o mais cedo possível.
Apesar do meu imenso respeito por quem mais veementemente ouvi defender esta doutrina como a única opção naquele momento, e de reconhecer que quer António Salgueiro – com quem aprendi mais que muito do que vou sabendo sobre gestão de fogo e fogos de gestão -, quer Tiago Oliveira, sabem muito mais que eu do assunto, não partilho dos seus pontos de vista sobre esta doutrina.
Não porque não lhe reconheça racionalidade – para além de perceber a diferença de perspectiva de quem tem de tomar decisões nos cornos do toiro face a quem dá opiniões aqui sentado, como eu – mas porque a acho inexequível: a percentagem de ignições que dão origem a grandes fogos é tão pequena em relação ao número total de ignições que, em condições extremas, não é possível controlar os grandes fogos na origem.
A realidade veio dar-lhes parcialmente (pelo menos) razão, a situação não correu nada mal face ao risco previsto, o que nos leva a uma de duas hipóteses: 1) de repente ficámos muito bons na gestão de fogo (há evidentemente melhorias, que serão especialmente visíveis em situações menos extremas); 2) o risco previsto desvaloriza o papel do vento e amplia o papel de outros factores, havendo algum desfasamento face à realidade.
Não sei discutir a segunda hipótese, mas tenho a intuição de que foi a relativa benignidade do vento que nos permitiu passar quase tranquilamente pela situação (a que se soma o facto das zonas mais perigosas do país terem ardido há cinco anos, e portanto apresentarem, ainda, um baixo risco estrutural, mesmo quando o risco meteorológico é extremo). Volto a frisar que estou a pisar areias movediças face ao que sei sobre estas matérias, é portanto uma intuição que não sei fundamentar.
Fechada esta longa introdução, vejamos como reagiu o governo confrontado com os riscos identificados e a doutrina que descrevi acima.
Tal como na epidemia (o paralelismo foi explicitamente referido por António Costa), transferiu a responsabilidade pelos resultados para os comportamentos individuais e tomou decisões maximalistas de restrição de liberdades individuais, proibindo a circulação nos espaços florestais, com o objectivo de reduzir a zero, se possível (as pessoas envolvidas sabem que o zero é impossível, mas entendem que qualquer redução é, em si, virtuosa), as ignições.
Se isso teve algum efeito relevante na redução de ignições, não sabemos (tal como não sabemos que efeito tem andar de máscara em transportes públicos), nem é possível saber, mas o facto é que a opinião pública apoia fortemente esta transacção de liberdade pela sensação de segurança, corresponda ela a segurança real ou não.
Ou seja, politicamente não há como perder com esta opção, para o governo de turno (e as oposições deixam-se estar quietas para não serem confrontadas com o delicado problema da percepção pública de insegurança).
Por causa destas decisões, casamentos que eram em Monsanto – um espaço florestal gerido, com um quartel de bombeiros no interior que, no máximo, leva seis minutos a chegar ao local do fogo – foram transferidos para outro lado (ou em Sintra ou em muitos outros espaços florestais), actividades de turismo ecológico e sensibilização ambiental foram canceladas, infraestruturas que criam riqueza em zonas economicamente deprimidas encerraram, os produtores florestais do Oeste ficaram impossibilitados de ir gerir os seus povoamentos, apesar de condições de risco muito baixas no litoral Oeste, o Parque Bensaúde, um jardim urbano em Lisboa que até hortas tem e é mais pequeno que o jardim da Estrela foi encerrado, etc., etc., etc..
Logo que se anunciou esta restrição brutal às liberdades individuais, nomeadamente à liberdade de deslocação, protestei e a resposta que me deram foi exemplar: “são cinco dias para passar esta fase terrível, não é nada por aí além”.
Claro que não foram cinco dias, porque às restrições de liberdades se aplica o que é verdade para o fogo e para a guerra: até podemos saber como começa, mas nunca sabemos como e quando acaba.
Independentemente de ninguém ter feito contas ao impacto real desta decisão, nunca poderemos saber o que ela significa na erosão da confiança das pessoas que investem e trabalham no mundo rural, e portanto não podemos saber em que medida o aumento administrativo do risco para as actividades realizadas no mundo rural tem um retorno negativo na economia de regiões inteiras que precisam de economia para poder gerir o problema dos fogos.
Dir-se-á que era uma medida necessária.
Pois bem, o que vi, admito que esteja mal informado, é que a maior alocação de meios foi para resolver problemas causados por reacendimentos, uma responsabilidade directa do sistema de protecção a que, aparentemente, o Estado não dá a devida atenção, já que a taxa de reacendimentos em Portugal é muito elevada.
Não sei o suficiente sobre gestão de fogos florestais para dar, ou não, razão a um amigo – esse sim, sabe do assunto por “honesto estudo com longa experiência misturada” – que me dizia que reacendimentos como os de Alvaiázere deveriam dar origem a processo disciplinar, mas sei o suficiente para já ter visto imagens incompreensíveis de rescaldos feitos a água, com manutenção de combustível entre a área ardida e a linha de ancoragem sem combustível e outras coisas que tais.
O que isto significa é que o mesmo Estado que trata negligentemente uma reconhecida fonte de ignições e dispersão de meios como os reacendimentos – entre outras razões porque não separa as funções de protecção civil das de combate ao fogo florestal, nem investe na especialização dos operacionais de combate ao fogo florestal, profissionalizando-os e capacitando-os, inclusivamente no uso generalizado de fogo de gestão em combate e rescaldo – atira a responsabilidade da gestão de ignições para as pessoas comuns e adopta regras claramente maximalistas e de restrição de liberdades individuais, como forma de lidar com as urgências que a inversão de prioridades cria.
Talvez um maior esforço de equilíbrio entre liberdade e segurança nos permitisse encontrar soluções socialmente mais úteis que as que foram adpotadas para a gestão das ignições, à custa das liberdades individuais, e com apoio generalizado da sociedade.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.