
“Plus fréquents, plus étendus et plus menaçants qu’autrefois, ils s’inscrivent dans un contexte de transition, dans la relation des populations avec le feu et dans son comportement dans les paysages, qui touche de vastes zones du globe”.
É de facto uma ironia eu escrever este título num post feito em 25 de Abril, mas antes disso é sobretudo uma coincidência.
Tudo começa quando reparo num título da revista Visão “Grandes incêndios, um legado do Estado Novo”.
A peça é assinada por Luís Ribeiro, que vou conhecendo por aí e tenho na conta de um jornalista com bom senso, o que aumentou a minha estranheza, e me fez ler a peça.
Foi por essa via que fiquei a saber de uma conferência ontem, 24 de Abril, sobre um projecto de investigação chamado Paisagens de fogo, e também por isso que acabei por ter acesso às comunicações apresentadas, produzidas no contexto deste projecto.
É de um dos artigos a que cheguei por esta via a citação com que começo o post, e o facto de o estar a fazer a 25 de Abril, com o título que escolhi, não é nenhum branqueamento do 24 de Abril, é uma irritação com a manipulação ideológica com que a academia se entretém para contrabandear ideias que, no mínimo, aparecem recobertas por névoa woke (para usar uma expressão que não é minha, mas achei particularmente adequada) que impede os investigadores de ver para além dos seus preconceitos.
“Au cours de ce processus, les intérêts et l’économie des peuples utilisant les baldios ne sont guère pris en compte [Radich et Baptista 2005] et l’appareil d’État, avec ses ingénieurs et gardes forestiers, s’impose localement. Après la Révolution de 1974, qui a mis ¬n à quarante ans de dictature, les baldios sont revenus aux mains des communautés rurales (avec le décret-loi no 39, du 19 janvier 1976). Cependant, les caractéristiques des baldios et de la population résidente se sont, entretemps, profondément transformées, et les liens entre les deux passablement distendus [Baptista 2010]”.
Usa-se uma bibliografia cuidadosamente escolhida: tanto quanto sei, a minha tese de doutoramente é a única sobre a evolução da paisagem rural na totalidade do continente português, ao longo de todo o século XX em Portugal, que se baseia em dados estatísticos directamente coligidos no sistema estatístico nacional, sem implicar qualquer escolha prévia de locais nem de métodos de produção de informação específica, o que não impede os investigadores deste grupo de escolherem não a usar (não por desconhecimento, ela é citada na tese de doutoramento do principal investigador do projecto), mesmo que fosse para demonstrar que está errada, claro.
A citação com que começo o post tem um erro frequente na discussão sobre o fogo em Portugal, a de que actualmente os fogos são mais frequentes do que eram.
É verdade que não se sabe, ou melhor, não está demonstrado de forma quantitativa, a quantidade de área ardida por ano no sistema tradicional, à escala da paisagem, mas tudo aponta para que a mudança do padrão de fogo que ocorreu seja de fogos mais frequentes, menos intensos e menos contínuos, para fogos menos frequentes, mais intensos e mais contínuos.
O que não é incompatível, pelo contrário, com a ideia, essa sim, verdadeira, de que os grandes incêndios são hoje mais frequentes do que eram, uma ideia frequente entre os investigadores de ecologia do fogo: uma das principais razões para ter fogos maiores, mais contínuos e mais intensos é o facto de nos encarniçarmos a impedir e combater os fogos pequenos e médios, obtendo como resultado uma maior acumulação de combustível.
Há uma velha tese de investigadores florestais que relaciona esta evolução com a ocupação dos baldios e as políticas florestais do Estado Novo (no fundo, validando a tese de “Quando os lobos uivam”), frequentemente ligados ao PC mas também de outras tendências políticas, que é uma tese que hipervaloriza as decisões do Estado, em detrimento das transformações económicas e sociais (incluindo tecnológicas) e da morte consequente da economia de sobrevivência que geria a paisagem.
Se era razoável admitir essa tese no tempo de Aquilino Ribeiro (e sem entrar na discussão sobre as razões pessoais que teria para escrever contra os serviços florestais e o Estado Novo), hoje seria uma tese completamente desacreditada, não fosse a vontade de demonstrar as malfeitorias do Estado Novo.
Repetindo-me, o Estado Novo era um regime ilegítimo por basear o governo na força e não na vontade das pessoas comuns, não é preciso manipular a história para tentar demonstrar que foi um regime parecido com o de Pol Pot, ou coisa do género, no que à repressão ou aos resultados económicos diz respeito.
25 de Abril sempre, incluindo na investigação histórica, não é preciso inventar, mesmo que sob a protecção da academia, que os grandes incêndios que temos são um legado do Estado Novo (que, já agora, durou menos tempo que o actual regime, em que as tendências anteriores, com a psicose de apagar fogos úteis, só tem conseguido agravar o problema).
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.