Henrique Pereira dos Santos

O eucalipto como metáfora do país – Henrique Pereira dos Santos

Governo aumenta área para plantação de eucaliptos que prometeu reduzir” é a manchete, a toda a largura da primeira página, do Público de hoje.

Lá dentro, uma peça assinada por Carlos Dias repete, de forma acrítica, esta carta aberta de algumas associações (já lá vamos) sobre o assunto.

Primeiro, o jornalista não faz a menor ideia do assunto sobre o qual está a escrever e os editores que resolvem produzir a manchete citada também não.

Em si, é normal, os jornalistas não têm de ser especialistas em todos os assuntos, mas sabendo que não percebem nada sobre o assunto que estão a tratar, não tomam uma precaução básica: ouvir outros pontos de vista para avaliar se o ponto de vista que escolheram tem a menor consistência.

Ou seja, primeiro retrato do país, uma imprensa extraordináriamente permeável à manipulação porque não faz o mínimo dos mínimos que seria de esperar de jornalistas.

Olhemos agora para os signatários da carta aberta em que se baseia a manchete e a peça do jornalista.

A primeira associação (as associações estão por ordem alfabética) que assina o carta aberta e, pelo texto, evidentemente quem a escreveu, é uma associação unipessoal, misto de associação e empresa de serviços, fundada pelo seu único elemento conhecido, a sua ex-mulher e uma empresa do dito (esta última informação não garanto em absoluto, poderia ir verificar, mas não vale a pena), sem estatutos acessiveis, sem contas conhecidas, sem orgãos sociais conhecidos, sem quaisquer processos eleitorais conhecidos e, evidentemente, sem qualquer relevância ou representação social.

Trata-se da fachada usada por Paulo Pimenta de Castro, que conheci bem durante as discussões da regulamentação de conservação da natureza por ser o secretário-geral da Federação Portuguesa de Produtores Florestais, cujo Presidente era José Manuel Casqueiro e tinha a sede no edifício da CAP. Nessa altura, Paulo Pimenta de Castro distinguia-se nessas discussões sobre a regulamentação de conservação (rede natura, áreas protegidas, plano sectorial da rede natura, etc.) por um alinhamento forte com a CAP e, sobretudo, pela defesa intransigente dos interesses dos produtores florestais, com claro destaque para a defesa dos interesses da fileira do eucalipto.

Depois de despedido, Paulo Pimenta de Castro passou uns tempos no Brasil, do qual regressou há uns anos com uma postura fortemente crítica em relação aos seus antigos patrões e, supostamente, defendendo os interesses dos pequenos produtores, sobretudo da fileira do pinho.

Na sua fronda contra os antigos patrões, acabou por se aproximar de João Camargo, genro de Francisco Louçã e um activista da Climáximo, um spin off do Bloco de Esquerda e a segunda associação a assinar a tal carta, pessoa com quem assinou um livro tecnicamente indigente sobre a floresta portuguesa, em que se dá largas à difamação de terceiros sem qualquer base verificável (eu sou brevemente mencionado como sendo mais um vendido aos interesses do eucalipto, mas há gente difamada de forma bem mais séria que eu, nesse livro), na linha do que é o discurso normal do Bloco de Esquerda contra os interesses dos outros.

Das outras associações não vale a pena falar porque assinam a carta por serem contra o eucalipto, e nem sequer se deram ao trabalho de perceber o que estavam a assinar.

Segundo retrato do país, uma sociedade civil em que se distinguem mal os mecanismos “familiares” e minoritários de influência e em que as maiorias estão balcanizadas reagindo pavlovianamente aos estímulos que lhes são servidos.

Agora o fundo da questão.

Toda a conversa é um disparate pegado porque o que está em causa é a mera aplicação da lei, que prevê a transposição dos Planos Regionais de Ordenamento do Território para os instrumentos de gestão territorial concelhios, transposição essa em que, nos concelhos em que há margem legal para a expansão do eucalipto, pode haver lugar a um mecanismo de créditos de transferência de área de eucalipto.

O que a lei prevê (mal, mas não é isso que estou a discutir) é que alguém que retire eucaliptos de uma propriedade adquira um crédito que pode até vender a quem queira plantar novas áreas de eucalipto, embora perdendo direito a dez por cento da área por cada ano de diferença entre o arranque e a plantação (arranco este ano, ganho um crédito, mas se apenas o conseguir vender mais tarde e plantação for feita dois anos depois, já só posso plantar 80% da área inicial).

Este mecanismo pretende ser um estímulo à substituição de eucaliptal pouco produtivo por eucaliptal mais produtivo, e está, desde sempre, previsto na legislação actual.

O mecanismo, na prática, não funciona, mas isso é outra história, entre outras razões porque o Estado não tem feito a parte que lhe compete para que funcione.

Para além disso, a carta aberta em causa reconhece o que é evidente: diga a lei o que disser, a área de eucalipto aumentará ou diminuirá em função do contexto económico e não do que estiver escrito na lei porque não há capacidade para aplicar a lei. Infelizmente a dita carta aberta não conclui o que deveria ser evidente: se uma lei não é cumprida de forma generalizada, o que está mal é a lei, não são as pessoas.

Terceiro retrato do país, está profundamente enraizada a ideia de que problemas sociais e económicos complexos se resolvem produzindo leis.

Vejamos agora o que poderia ser feito de diferente e até está a ser feito em alguns casos, por ser do evidente interesse da indústria de celulose.

Portugal tem cerca de 850 mil hectares de eucaliptos, dos quais 200 mil são tecnicamente bem geridos e cerca de 650 mil são geridos numa paleta da situações que vão do gerido mais ou menos ao abandono completo.

Pareceria de meridiana clareza que o interesse de quase todos, quer dos que defendem a produção de eucalipto, quer dos que acham que a produção do eucalipto é um quinto cavaleiro do apocalipse, seria aumentar a área bem gerida, de modo a aumentar a produtividade média por hectare e a eficiência económica, e diminuir a área global de eucalipto que, na sua maioria, não tem interesse nenhum.

Mesmo do estrito ponto de vista da produção industrial, esta área mal, ou não, gerida de eucalipto é um passivo, e não um activo (Paulo Pimenta de Castro, entre outros, tem uma teoria conspirativa que argumenta que a indústria de celulose fomenta essa situação para evitar aumentar os preços ao produtor, pessoalmente nunca percebi a racionalidade da teoria, mas não sei o suficiente do mercado de madeiras para ter opinião segura).

Quarto retrato do país, embora haja soluções racionais que permitem o estabelecimento de um chão comum que optimiza socialmente as soluções adoptadas, as facções preferem manter-se nas suas trincheiras com medo de serem acusadas de estarem a fazer o jogo do inimigo (porque, evidentemente, não há adversários, só há inimigos).

A psicose sobre o eucalipto adquiriu uma tal dimensão, que numa situação concreta, havendo 110 hectares de eucalipto em fim de vida numa propriedade de 120 hectares (os outros 10 hectares são galerias ripícolas), alguém se propõe replantar 85, manter os 10 hectares de galerias ripícolas e reconverter 25 hectares para medronheiro.

A administração pública chumba liminarmente, preferindo uma situação de abandono dos 120 hectares a uma situação produtiva, e com gestão, que diminui a área de eucalipto em 25 hectares, tendo como argumento de fundo a defesa da floresta contra incêndios, um absurdo evidente porque do ponto de vista da gestão do fogo, 120 hectares não geridos são incomparavelmente mais preocupantes que 120 hectares geridos, mesmo que 85 desses hectares tenham eucaliptal.

Isto só é possível porque a psicose associada ao eucalipto há muito deixou de ter a menor racionalidade e parvoíces como esta carta aberta citada chegam a manchetes de jornal, sem o menor contraditório, só porque a sociedade, no seu todo, diz do eucalipto o que Maomé não disse do toucinho.

Noutras áreas, como Álvares e Pedrogão Grande, é a indústria que lidera processos de reconversão que diminuem a área de eucalipto como condição para mais e melhor gestão, enquanto a sociedade e a administração se entretêm em guerras de alecrim e manjerona para forçar a manutenção de regras administrativas que todos os intervenientes sabem que ninguém cumpre porque são regras estúpidas.

Como é forçosamente estúpido um país decidir centralmente, através do Estado, com base em instrumentos administrativos, as áreas de ocupação máxima do território seja do que for (a regra é igualmente estúpida se estiver em causa a área de ocupação com regadio, com mirtilos, com olivais, com amendoais, com zonas urbanas, com milho, com cereais, etc.), quando a ocupação do território depende de milhares de decisões de milhares de pessoas cujo objectivo central é ter pão na mesa todos os dias.

E pronto, é isto um país.

Um país em que, hoje, dezenas de amigos meus reproduzem a manchete do Público sem a menor sombra de capacidade crítica que lhes permitisse, ao menos, perceber que, evidentemente, a história está muito mal contada.


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